Batalha contra a dependência química é desafio complexo

Três usuários de drogas relatam suas experiências, do vício à recuperação

Andrei dos Santos Rossetto

Texto de Kety Katiussa

Foto: Reunião do grupo Narcóticos Anônimos / Membro de NA e fotógrafo, LabJ

“Era tudo para eu não sentir”, conta Roberto, de 35 anos, nome fictício para proteger sua identidade. Com uma trajetória de vida marcada pela dependência química, o diretor de tecnologia diz que o primeiro contato com a cocaína foi aos 14 anos. Antes, em uma busca por alívio da infância e adolescência difíceis, chegou a fumar maconha.

Roberto foi criado pela avó. Sua mãe era viciada e morreu atropelada sob o efeito de drogas. Ele recorda do cheiro da maconha ainda criança, quando mexia nas coisas da mãe. Além de lidar com a ausência dela, também sofria com a agressividade da avó e tinha uma relação complexa com o pai: foi filho fora do casamento pelo lado paterno.

Além da mãe, os primeiros contatos com drogas foram entre amigos. O ambiente, aliás, pode ser um dos fatores que leva uma pessoa a usar drogas, segundo o psicólogo cognitivo-comportamental Kayhan Jappe. “Tanto para pertencimento, como identificação, para tolerar a frustração ou mesmo para prazer, o ambiente é um fator indispensável nessa questão”, explica Jappe à reportagem.

Após um ano usando cocaína, Roberto começou a ter uma rotina diferente. “Sentia a necessidade de usar para estar bem em qualquer dia. Usava no banheiro do colégio, isso aos 15 anos”, conta. Com o vício intensificado, decidiu compartilhar a situação para a família e, numa tentativa de recuperação, foi para uma fazenda de reabilitação aos 16 anos. Ao sair, conseguiu permanecer limpo durante nove meses. Após esse período, foram quase 20 anos de recaídas e muita luta interna para vencer o vício. Roberto está limpo há 11 meses, após frequentar com assiduidade reuniões em grupo no Narcóticos Anônimos.

De acordo com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), mais de 292 milhões de pessoas usaram drogas em 2022, em escala global. Esse número representa um aumento de 20% em relação à década anterior. A maconha continua a ser a droga mais consumida em todo o mundo (228 milhões de usuários), seguida dos opioides (60 milhões), das anfetaminas (30 milhões), da cocaína (23 milhões) e do ecstasy (20 milhões de usuários).

“É importante destacar que, na maioria das vezes, a idade que as pessoas experimentam esse acesso (drogas), é uma idade em que o cérebro não está ainda em formação biológica. Ou seja, a parte responsável pela tomada de decisões, para nossa serenidade, o córtex pré-frontal, ainda não foi formado até os nossos 23 ou 24 anos de idade”, conta o psicólogo Jappe.

Foi aos 14 anos que a Alice, nome fictício, conheceu a maconha. Neta de imigrantes que produziam vinho, aos 9 anos teve o primeiro contato com o álcool na casa dos avôs durantes as férias da escola. “Roubava vinho, na brincadeira, mas já gostava de ficar um pouquinho tonta”, lembra. Da infância até a adolescência, Alice já tomava bebidas alcoólicas. Dos 14 aos 18 anos, fumava muita maconha — sozinha e com amigos — estudava o Movimento Rastafári, se vestia de acordo com a ideologia e ouvia Reggae. Mas, no aniversário de 18 anos, tudo mudou. Durante a comemoração, experimentou a cocaína. “E aí eu larguei a maconha. Eu era bem gordinha, mas depois que comecei a usar o pó, perdi 20kg em seis meses.”

Foram seis anos de uso recorrente de cocaína e a vida dela se transformou radicalmente. Se envolveu em acidente, foi presa duas vezes e teve algumas overdoses. “Tenho muitas histórias de fundo de poço”, conta Alice.

Em 22 de abril de 2000, aos 24 anos, ela decidiu parar de usar drogas — incluindo o álcool — após inúmeros acontecimentos trágicos em sua vida. Ela recebeu ajuda de um completo estranho, enquanto estava perdida em um beco no município de Viamão, Região Metropolitana de Porto Alegre. Ela usou drogas por cinco dias seguidos naquele lugar. Por duas vezes, tentou sair, mas não conseguia. Ao perceber os esforços da jovem para sair de lá e notar o estado físico e emocional que ela se encontrava, um homem a levou até o ponto de ônibus e pagou por uma passagem até Porto Alegre. “Ele perguntou o que eu estava fazendo com a minha vida”, relembra.

Alice disse que voltou para casa e ficou sentada por horas. Pensou em morrer. Mas ela escolheu o caminho da recuperação. Contou para a irmã mais nova tudo o que estava passando e procurou ajuda. No mesmo dia, foi ao grupo de Narcóticos Anônimos da Cruz Vermelha. Hoje, aos 48 anos, é funcionária pública e está limpa há 24 anos.

Foto: Reunião do grupo Narcóticos Anônimos / Membro de NA e fotógrafo, LabJ

Recuperação e força interna

A batalha contra a dependência de drogas é um desafio complexo que afeta milhões de pessoas em todo o mundo. Entre os recursos disponíveis para aqueles que buscam a recuperação estão a ajuda profissional, com terapia individual e os grupos de apoio, como Narcóticos Anônimos (NA). Esses serviços desempenham um papel crucial na jornada para a sobriedade, oferecendo suporte emocional e orientação prática.

Esse foi o caminho para o Guilherme, de 25 anos, nome fictício, conseguir largar o vício. Após 10 anos de vício ativo, o estudante de Administração, está há um ano e seis meses sem usar maconha e cocaína. Assim como os outros entrevistados, ele também correu riscos. “O maior desafio era parar. Eu sempre queria mais uma dose, ficava dias usando. Cheirava oito linhas de cocaína”, relata. O jovem conta que experimentou quase todas as drogas existentes. Ele perdeu amigos próximos, uma amiga chegou a ser assassinada pelo envolvimento com o tráfico.

Com sua vida estagnada e sem controle sobre o vício, o rendimento na faculdade e trabalho caíram e as relações pessoais ficaram complexas. Além do emocional abalado, já que o arrependimento sempre batia na porta após as recaídas, sentia que o corpo começava a repelir as substâncias. “Me olhava no espelho, estava saturado. Magro, tinha ânsia de vômito”, diz. Em pleno verão de 2023, conversou com a família e decidiu se internar no Hospital Espírita de Porto Alegre. Ele deixa evidente que a recuperação se deve a uma série de fatores, entre eles, fazer terapia individual, frequentar grupos de apoio, evitar ambientes de risco, incentivo familiar e possuir uma eterna vigilância. “Não existe garantia. Só tenho controle do dia de hoje”, conta.

Procurado pela reportagem, o Conselho Municipal Sobre Drogas de Porto Alegre (Comad) afirmou que apenas no Centro de Atenção Psicossocial Esperança (Caps) — que abrange três bairros da capital gaúcha — existem 357 usuários em atendimento ativo no serviço. O conselho é responsável por desenvolver ações para prevenção da dependência química da população. O serviço existe desde 2008 e, ao longo dos anos, já beneficiou 4.400 pessoas.

Foto: Reunião do grupo Narcóticos Anônimos / Membro de NA e fotógrafo, LabJ

“Só por hoje funciona”

Os grupos de apoio são sempre imprescindíveis. “O ambiente, neste caso, pode estar atuando num fator mais protetor e nos levando para essa questão da funcionalidade, que é o caso dos grupos de apoio”, explica Jappe.

O lema do Narcóticos Anônimos, “Só por hoje”, tem importância para Roberto, Alice e Guilherme. Eles encontram no grupo uma identificação das suas angústias e um afago para os seus medos. Procuram viver um dia de cada vez. “Só por hoje” aplicado na realidade de suas vidas, lembra que o mais importante é não usar a primeira droga no dia de hoje, haja o que houver. O foco no momento presente elimina a carga de angústia que o futuro reserva.

Reportagem produzida para a disciplina de Reportagem e Entrevista, sob supervisão da professora Paula Sperb.