100 dias vivendo embaixo da ponte

“Saudade de entrar para o meu quarto, deitar na minha caminha e tirar um soninho tranquilo”, diz Gabriela Freitas, moradora da Ilha dos Marinheiros. 

Luciana Weber

Escrito por: Gabrielly Camargo e Luciana Weber

Reprodução/ Gabrielly Camargo

Após mais de cem dias da enchente de maio atingir Porto Alegre, cerca de uma dezena de barracas ainda abriga moradores nos arredores da BR-290. São famílias que não retornaram para suas casas – ou o que restou delas – e agora vivem às margens da estrada. O lugar serve de moradia, com móveis e eletrodomésticos resgatados da enchente ou fruto de doações. Próximo a algumas barracas é possível ver fogão, brinquedos, aparelhos de ginástica e fardos d’água jogados ao chão. Em uma primeira impressão, a desordem faz parecer que o local foi deixado às pressas. Perto das barracas, uma pilha de resíduos formada por documentos como prontuários de saúde, que parecem não ter sido atingidos pela enchente, forma uma espécie de aterro à beira da estrada. 

Embaixo da ponte de acesso à Ilha dos Marinheiros,  a moradora  Gabriela Santos de Freitas, 29 anos, e sua família não dormem em seu próprio quarto desde o dia 2 de maio. Gabriela vive em uma barraca improvisada com o marido, Milton Lemos,  58 anos, e a filha, Natalia Freitas da Silva, 10 anos.  Ela relata que, quando as chuvas se intensificaram, estava com a criança no segundo andar da casa do enteado, enquanto o marido e seu filho permaneceram na casa tentando resgatar alguns animais da família e colocar outros no telhado. O medo de Gabriela era de que a residência de madeira, em que estava, fosse levada pela correnteza: “Liguei para todo mundo, para a Defesa Civil, para o subprefeito, mas disseram que havia protocolo e que eu tinha que esperar. Como é que eu vou esperar? Tô com uma criança aqui dentro”, lembra ela. Vários helicópteros passaram e Gabriela já não aguentava mais pedir socorro, aos prantos. Apenas no dia seguinte um voluntário a resgatou junto com a filha, levando-as para a BR-290: “Eu só queria tirar minha filha de lá, eu estava com medo de que a casa caísse, se isso acontecesse, seríamos levadas pela correnteza direto para o rio. E eu sei que a gente não ia se salvar”, relembra a moradora. 

Gabriela considera as duas primeiras semanas as mais difíceis: “Na primeira semana, dormimos dentro da caminhonete – eu, meu esposo e minha filha -, porque não tínhamos lona, não tínhamos nada.” Mesmo sob chuva, a família seguia cuidando dos animais, que ficaram atados à beira da estrada e, por não terem lona, dormiam molhados na caminhonete que também ficava desprotegida. Ela conta que, em um dos dias que a chuva caía forte, a família pediu lona a um conselheiro tutelar, que estava passando ajudando alguns moradores da Ilha. Horas depois, recebeu apenas um pedaço de 1 metro de largura por 4 metros de comprimento, que mal cobria a caminhonete. Aquela havia sido mais uma noite em que a família dormiu molhada. Mais tarde, outra voluntária ajudaria com lonas maiores. 

Durante as quase duas semanas em que morou no veículo, a família não tinha água quente para o banho ou para cozinhar, que só foi possível depois de ganharem a doação de um fogareiro. Dias depois, os três receberam uma barraca, onde vivem até hoje. Com doações de voluntários, surgiu também uma casa provisória para os animais. Em uma estrutura de madeira  coberta por lona, 18 cabritos ocupam o espaço.

A família cria mais de 20 animais, a maioria não ajuda diretamente na renda da família. Os animais destinados ao consumo, como porcos, vacas e galinhas, são usados para esse propósito. Ainda têm cavalos, cachorros e até cabritos filhotes que a família não conseguiu desapegar, alguns não conseguiram ser resgatados a tempo ou não sobreviveram. Já parte dos cachorros foram adotados por voluntários, já que seria muito difícil manter os cuidados com todos.“Eles estavam dormindo na chuva, né? A gente não tinha onde colocar, nós três já estávamos dormindo na camionete, não tinha como colocar pra dentro” conta a moradora que, pela primeira vez, não conteve as lágrimas. 

Reprodução/ Gabrielly Camargo

O barulho e o peso dos carros e caminhões passando a poucos metros de distância faz com que as estruturas improvisadas tremam, a moradora até “brinca” com a filha dizendo que: “parece que a gente tá num berço porque embala tudo”. Gabriela e Milton ainda visitam, ocasionalmente, o que restou de sua antiga casa para limpar e ver o que pode ser recuperado. Ela conta que, recentemente, tem ido mais vezes por ter conseguido um lava-jato emprestado e que vai tentar salvar o freezer que ficou para trás. Isso tudo, enquanto espera doações de camas e de um fogão que foi prometido a ela por outra moradora da Ilha.  Eles temem voltar de vez para a sua residência e que uma nova enchente ocorra em setembro, como aconteceu no mesmo mês em 2023, forçando-os a deixar o local novamente. Outro motivo que faz a família continuar debaixo da ponte  são os animais que precisam de um lugar maior para receber os cuidados necessários.

Reprodução/ Gabrielly Camargo

Quanto às doações de alimentos, Gabriela mencionou que embora as cestas básicas estejam chegando, ela tem recusado, pois está bem abastecida. O que realmente falta no dia a dia é água: “Está vindo muito pouco. O caminhão da Subprefeitura traz a água que damos para os animais; nós tomamos das garrafinhas”. A expectativa, segundo ela, é que a família consiga voltar para a antiga residência em 30 dias, para começar a ajeitar o interior e o que for necessário no exterior da casa. 

Sobre sua filha, Gabriela explicou que ela voltou a frequentar a Escola Estadual Alvarenga Peixoto, localizada em frente ao local onde a família está abrigada, mas expressou grande preocupação com a educação da menina, que foi prejudicada pela pandemia e agora pela enchente, ainda não sabe ler e escrever, apesar de estar no quinto ano. Natalia é uma doce menina, com um joelho ralado e a vontade de voltar para casa. Enquanto faz carinho em um dos cachorros que ficaram, ela conta sentir falta de poder correr com os animais no quintal de casa. Após um longo período de tempo longe da sala de aula, Natalia retoma a rotina escolar aos poucos. Quando está junto das amigas, elas se divertem com brincadeiras simples, como colocar um colchão na descida ao lado da ponte e fazer de escorregador. Sozinha, brinca na casa de bonecas improvisada com papelão e lona, um castelo de brinquedo rosa pendurado na porta de entrada chama atenção. Essa casa, que  já foi ocupada por outra família que conseguiu retornar à sua antiga residência,  ficou como a “casa de bonecas de Natália” com o pedido que  Gabriela cuidasse do espaço, caso algum dia a família precisasse voltar, devido à outra possível enchente, um temor sempre presente. 

Reprodução/ Gabrielly Camago

Atualmente os três vivem de recursos do Bolsa Família, já que Milton está impossibilitado de continuar os trabalhos de caminhoneiro devido ao glaucoma. Gabriela conseguiu o Auxílio Reconstrução no valor de R$ 5,1 mil, destinado a famílias que foram diretamente atingidas pela crise climática e disponibilizado pelo governo federal. Além desse valor, ela também conseguiu sacar R$ 2,5 mil pagos para pessoas atingidas pela enchente e em situação de pobreza – auxílio esse disponibilizado pelo governo estadual. Todos pagos em uma única parcela.