O fenômeno da abstenção

O primeiro turno das eleições municipais no último domingo (6) fez os ministros do TSE ficarem em alerta. Quais fatores justificam o alto número de eleitores que preferiram não exercer seu direito ao voto? 

Andrei dos Santos Rossetto

Artigo de Gabriel Vargas

No Brasil, o direito ao voto é uma conquista de lutas intensas e um processo histórico ao longo dos anos. Apenas em 1985 metade da população brasileira teve o direito de escolher seus governantes. Até então, analfabetos estavam excluídos das eleições, representando um grande retrocesso social.  

Ao longo de quase todo o período imperial (1822-1889), os analfabetos tinham o direito de expressar sua vontade como qualquer outro homem livre. No entanto, em 1881, a Lei Saraiva foi promulgada com o objetivo de endurecer os critérios para a elegibilidade dos eleitores, revogando assim o direito de voto dos indivíduos analfabetos. Demorou 100 anos para a reconquista do poder de voto.  

É crucial lembrarmos de um fato relevante: até as décadas de 1970 e 1980, a taxa de analfabetismo no Brasil era de 30%. Isso significa que um grande número de pessoas foi impedido de exercer um direito que hoje parece básico. Em 1892 foi extinta a regra que autorizava o voto apenas de indivíduos que obtivessem uma quantia mínima de renda. As mulheres ganharam o direito de participar das eleições em 1932, o que, na prática, só aconteceu anos mais tarde. Foi nesse mesmo período que se iniciou o chamado Estado de Exceção, sob o governo de Getúlio Vargas. 

Em 1946, depois de uma espera de 14 anos, a abolição finalmente aconteceu, culminando na conquista do voto feminino. Originalmente, a idade para votar era restrita aos que tinham mais de 25 anos durante o Império. No entanto, essa idade foi posteriormente reduzida para 21 anos. Foi somente com a Constituição de 1946, durante o período da República, que o direito ao voto foi concedido aos maiores de 18 anos. Além disso, o voto facultativo para maiores de 16 anos só foi estabelecido na Constituição de 1988. 

Como podemos perceber, a luta por igualdade nas urnas foi longa e não se imaginava que pelo caminho uma Ditadura Militar iria colocar o voto, um elemento fundamental para a democracia, em xeque. O movimento civil que ficou conhecido como Diretas Já (1983-1984) levou às ruas milhares de cidadãos de todas as capitais brasileiras. O grito que percorreu por toda a nação tinha uma intenção: eleições diretas para Presidente da República.  

Durante este movimento histórico, um comício em São Paulo reuniu mais de 1,5 milhão de pessoas unidas pela causa do direito de eleger o Chefe de Estado, com o objetivo de encerrar o regime militar. No entanto, em 1984, a emenda que permitiria tal direito foi rejeitada pelo Congresso Nacional, que decidiu realizar a eleição de forma indireta através do Colégio Eleitoral, composto por parlamentares e representantes das Assembleias Legislativas estaduais. Essa decisão resultou na eleição de Tancredo Neves como presidente em 1985. Contudo, Neves não assumiu o cargo por causa de uma doença que o levou à morte apenas um dia antes da posse. Em seu lugar, o vice-presidente eleito, José Sarney, tomou posse. 

O povo brasileiro elegeu seu primeiro presidente por meio de eleição direta, com mais de 50% da população apta a votar, em 1989. Fernando Collor foi consagrado como o primeiro presidente eleito diretamente pelo povo desde 1960. 

Assim, o que poderia justificar o alto índice de abstenções no Brasil, evidente tanto em eleições estaduais quanto federais? Como observamos na primeira rodada das eleições municipais do último domingo, 6 de outubro, essa tendência também se manifesta no âmbito municipal. 

Na segunda-feira (7), a Ministra Carmen Lúcia, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), analisou o primeiro turno das eleições, evidenciando uma preocupação significativa. Em seu discurso, destacou que 21,65% dos eleitores aptos a votar se abstiveram, representando a maior taxa de abstenção desde os anos 2000, apesar de uma ligeira queda em comparação com 2020 (23,5%). 

Segundo dados do TSE (2012; 2014), nos pleitos realizados pós-redemocratização (1998-2014) os eleitores se abstiveram em uma ordem de 15% a 20% (eleições para governadores e presidência – 15% primeiro turno e 20% segundo turno). Na época, o então presidente do TSE considerou que estes índices eram incrivelmente altos e realizou a campanha #VotaBrasil na tentativa de reduzi-los. 

Os dados comprovam o aumento significativo no decorrer dos anos. Até 1989, o valor não havia sido maior que 12%. Na série histórica, os índices para as eleições municipais eram relativamente mais baixos: 13% em 1992 e o maior de 16,4% em 2012, representando em torno de 15 a 20 milhões de eleitores ausentes no país. Contudo, ao isolarmos a capital Porto Alegre, apenas em 2012 o percentual foi de 18,55% (199.656) e sobe para 22,51% (247.240) no primeiro turno de 2016, chegando a 25,26% (277.521) ao final do segundo turno do mesmo ano.  

Porcentagens totais em Porto Alegre   Eleições Municipais 
1996   19,99% 
2000   16,2% 
2004   17,3% 
2008   18,09% 
Fonte: TSE

No segundo turno das eleições municipais de 2020, a capital gaúcha registrou um índice de abstenção de 29,5%, que até então foi o mais alto já registrado. Antes das eleições de 2020, cientistas políticos previram um possível aumento no número de abstenções, que poderia superar o percentual de votos do candidato eleito. 

De fato, as previsões se confirmaram no primeiro turno de 2024. O atual prefeito Sebastião Melo (MDB), que concorre à reeleição da capital, obteve 49,72% (344.595) e vai ao segundo turno com Maria do Rosário (PT), que teve 26,27% (182.037).  

O número de abstenções é de 345.152 (31,51%), os votos totais foram de 750.367 – representando o percentual de 68,49% – entre eles 7,51% anularam ou votaram em branco. Foram 31.351 votos em brancos (maior que a votação total do candidato Felipe Camozatto do partido NOVO: 26.588 votos – 3,83%) e 24.983 anularam seus votos.  Somando nulos e brancos com as abstenções, o valor total é de 401.486, representando 36,65%.  

Porto Alegre (31,51%) foi a capital com o maior número de abstenções, a frente de Rio de Janeiro (30,58%), Belo Horizonte (29,54%), Goiânia (28,23%) e Florianópolis (28,05%). O maior colégio eleitoral do Brasil, a capital São Paulo, ficou na sétima posição (27,34%). 

Acontece que não é só aqui no Brasil que os altos índices de abstenções têm chamado atenção. Outras democracias representativas do ocidente perceberam um crescimento substancial em seus últimos pleitos eleitorais (Portugal, Espanha, Estados Unidos e Argentina). Não que sejamos os únicos a ter eleitores que deixam de exercer o direito ao voto, símbolo máximo da democracia, mas em nossos sistemas eleitorais o voto é obrigatório e por isso esse tema passa a ter grande importância. 

Esta movimentação política virou objeto de estudo. A teoria da modernização acredita que o fato é resultado de um desenvolvimento insuficiente dos meios necessários para que os eleitores adquiram e desenvolvam seus direitos políticos. Além disso, fatores como escolaridade, status social, faixa etária, acesso à informação e o local de moradia podem aumentar ou diminuir o estímulo a participação eleitoral.  

Outra tese utiliza a racionalidade estratégica dos indivíduos. No caso, o eleitor faz um cálculo racional sobre as possibilidades de influência, como se as regras que devem ser seguidas em eleições estruturariam as escolhas e o peso delas, positivas ou negativas. A estrutura seria o potencial da sua participação eleitoral, a proximidade dela e o nível de competitividade.  

“Os altos índices de abstenção podem ser considerados como um importante indicador de desafeto dos cidadãos em relação ao sistema democrático (Viégas e Faria, 2003)”.  

Marcello Baquerro, Ph.D em Ciência Política pela Florida State University (EUA) e autor de diversos artigos científicos sobre o tema, aponta quatro fatores que evidencia as limitações e a crise democrática formal:

a) um declínio da participação política com evidência de uma crescente alienação da política e insatisfação com os políticos; b) a perda da capacidade de governança, por parte dos estados, em virtude tanto do processo de globalização quanto da mudança da esfera pública para o mercado; c) as bases sociais da participação democrática e o pluralismo político em culturas caracterizadas por associações fortes estão ameaçadas por seu perceptível declínio, como também da participação não política (social); d) é fato que a amplitude tanto da democracia formal quanto das associações voluntárias é mais uma característica das sociedades avançadas, por serem elas sociedades organizacionais (Baquero, 2003).

Já José Álvaro Moisés, em uma de suas pesquisas, identificou resquícios de traços antidemocráticos entre os brasileiros e outras sociedades latino-americanas. Através de dados obtidos o pesquisador traçou três perfis: autoritário, ambivalente e democrático. As conclusões relatadas no caso brasileiro são que entre os democráticos, o Brasil é o antepenúltimo e possuímos o maior percentual de perfis ambivalentes. Entre os autoritários, estaríamos em escala mediana em comparação a outros países da América Latina – considerando os recentes eventos em que um grupo de indivíduos apelava para o retorno dos militares ao poder. 

O Latinobarômetro é um centro de pesquisa de referência internacional sobre a América Latina, principalmente com enfoque em investigação da percepção social sobre as instituições públicas e privadas. No relatório anual brasileiro de 2023 (são entrevistadas pessoas de todas as regiões brasileiras, selecionadas priorizando a diversidade), quando questionados sobre qual seria o problema mais importante enfrentado no país atualmente, os 3 primeiros foram: saúde (18,4%), desemprego (13,1%) e situação política (10,5%). Educação obteve o mesmo índice de 10,5%, entretanto as características dos entrevistados divergem. Dos que citaram o cenário político, 14,1% são homens e 7,4% mulheres. Dos que escolheram problemas na educação, 10,2% são homens e 10,8 são mulheres.  

Outra pesquisa interessante do Latinobarômetro é sobre a confiança na Instituição Eleitoral Brasileira, no caso o TSE. A entrevista apresentou 4 opções de resposta: muita confiança; confiança mediana; pouca confiança e nenhuma confiança. Os percentuais obtidos foram: 

Pouca confiança   32,9% 
Nenhuma Confiança   26.5% 
Confiança mediana   20.4% 
Muita Confiança   20.2% 
Fonte: TSE

O doutor em Ciência Política Gabriel Vitullo acredita que as altas taxas de abstenções nada mais são do que o reflexo do desinteresse dos cidadãos pela política. Um dos motivos apontados é a falta de identificação do eleitor com as instituições que conduzem eleições. Isso obstruiu o diálogo sobre assuntos públicos devido à personificação crescente das preferências. Tal situação é ocasionada pela falta de compromisso dos partidos políticos em mediar as preferências da sociedade/grupos sociais e da agenda política institucional.  

A política brasileira, culturalmente, enfrenta um descrédito de suas instituições, resultante de uma aparente incapacidade em implementar políticas públicas efetivas que garantam os direitos estipulados por estas mesmas entidades, inclusive os previstos em nossa Constituição. 

Esta tradição é também uma afirmação de que a premissa que leva a desconfiança no sistema político brasileiro não será superada com mecanismos exclusivos do próprio sistema para ele mesmo. Para exemplificar, uma reforma no sistema não é suficiente para uma resolução. São necessários mecanismos que impactem positivamente a camada social, não só no palco das decisões políticas, mas principalmente na área social e cultural. 

Assim, pode ser viável que as instituições percebam a necessidade de apoio de suas populações. O que se pode dizer como certeza é que variáveis econômicas, intelectuais, etárias, entre outras, não deixaram de ter um papel na compreensão dos eventos de abstenção nas corridas eleitorais. Sendo assim, é impossível que a explicação tenha como base apenas um ou dois fatores, mas sim uma composição social em torno de todos eles.