Negligência climática: MP analisa Megaobra do Zaffari e seus efeitos ambientais

O novo empreendimento entre a Protásio Alves e a Ary Tarrago preocupa pelos impactos do desmatamento na região

Andrei dos Santos Rossetto

Reprodução/ Pedro Pereira

Por: Anita Ávila

Após o maior desastre ambiental do Rio Grande do Sul, a prefeitura, junto com o Grupo Zaffari e AZ Empreendimentos, dá continuidade à megaobra localizada entre a Protásio Alves e a Ary Tarrago, no bairro Jardim Itu Sabará, zona leste da Capital. O empreendimento, que desmata 50 hectares de Mata Atlântica – o equivalente a 1,5 vez o tamanho do Parque da Redenção ou a cerca de 70 estádios de futebol – substitui a rica fauna e flora por um supermercado Zaffari, um Cesto Atacado e o condomínio de luxo Jardim Itália. 

As obras e o aparecimento de animais que vivem na floresta mobilizaram a comunidade. “Eles não mexiam na floresta. A partir do momento que mexeu, começou a ameaçar. Daí todo mundo começou a se mobilizar. O que iniciou de fato foi a aparição dos graxains”, comenta Ester Freitas, advogada e participante do movimento S.O.S Sabará.

O S.O.S SABARÁ é um movimento composto por moradores, biólogos, professores, advogados e pesquisadores, que denunciam o desmatamento causado pela obra. Com a visibilidade do seu perfil no Instagram, o grupo já realizou um protesto em frente à construção no dia seis de dezembro e também organizou uma petição requisitando a paralisação das obras, uma audiência pública e um estudo de impacto ambiental. Atualmente, o documento conta com mais de sete mil assinaturas.

Link da petição para assinar 

A falta das licenças necessárias e um processo em aberto para a desocupação de uma família no terreno fizeram com que o projeto ficasse parado por mais de uma década. A pausa tranquilizou os moradores, mas em março de 2024 a construção foi retomada. O local estava inativo há mais de 30 anos, desde que a Gaúcha Cross, uma antiga concessionária, encerrou as suas atividades. O terreno só foi vendido para o Zaffari em 2014, de acordo com a matrícula do imóvel. 

A busca dos animais por refúgio na obra é apenas a ponta do iceberg. O desflorestamento também contribui para as mudanças climáticas e altera o relevo da região. “A gente sabe que tem esse impacto da perda de espécies de plantas e de bichos”, explica Pedro Abreu Ferreira, biólogo, mestre e doutor em botânica e docente de Biologia da PUCRS. Por ser o maior bioma em constante ameaça de extinção, segundo o IBGE, a obra também intensifica o extermínio local do ecossistema. 

Em todo o território gaúcho, a presença do bioma corresponde a apenas 31% da vegetação – mas as áreas sem interferência humana representam apenas 7,9%. Os dados são do Atlas Socioeconômico do Rio Grande do Sul, publicados em 2019. “Não é uma floresta qualquer, é Mata Atlântica. A mais destruída do país todo, que antes ia do Rio Grande do Sul até o Rio Grande do Norte. Estão destruindo a mata que mais foi destruída desde a descoberta do Brasil”, diz o ambientalista Alex Gomes de Souza

O Jardim Itu Sabará é reconhecido pelo seu clima agradável. O vento é uma característica marcante, devido aos morros e às árvores que cercam o bairro. “A diferença de temperatura vai refrescando à medida que a gente chega, independentemente da época do ano”, comenta Lenise Muller, vizinha da obra e moradora do Jardim Itu Sabará há 48 anos.

DESEQUILÍBRIO NO ECOSSISTEMA: CLIMA E RELEVO

Mas a obra pode deixar os períodos com temperaturas mais altas na região, os moradores vão sentir um clima mais desagradável. “Dias muito quentes vão parecer ainda mais quentes. Especialmente para quem mora no entorno. Isso provoca imediatamente um efeito sobre o microclima da região. A gente tem bastante árvore, cobertura vegetal, aquilo funciona como uma ilha de frescor”, destaca o biólogo Pedro. 

Foto: Pedro Pereira

Especialistas alertam que a supressão acelerada da mata inviabiliza qualquer tipo de retorno da natureza. “É uma área que é esponjosa, serve para retenção hídrica de todo o entorno e também do Morro Santana”, comenta o ambientalista e também vereador na cidade de Cachoeirinha Leonardo da Costa. Ele foi um dos primeiros a denunciar os impactos do empreendimento na região. “Os moradores entraram em contato comigo, só que eu atuo mais aqui na região metropolitana”, acrescenta. Logo após repercussão das denúncias, a Deputada Sofia Cavedon e o Vereador Giovani Culau também abraçaram a causa. 

A expressão “área esponjosa” descreve o solo capaz de filtrar e reter água, seja de chuvas, alagamentos ou outros fenômenos. No entanto, em maio de 2024, o Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis), da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), informou que o solo de todo o Estado já atingiu o limite de absorção de água.

Quando o solo está saturado, a água não consegue mais infiltrar, o que ocasiona os alagamentos e o aumento da umidade na superfície.

O volume das chuvas, a ocorrência frequente de tempestades e os alagamentos nos bairros já são rotina na capital. A obra intensifica a escassez do solo, e os bairros que já enfrentam inundações ao redor do Jardim Sabará, como o Sarandi – um dos mais afetados pela enchente de maio de 2024 -, podem sofrer prejuízos ainda maiores. O plano de preservação da empresa não seria suficiente para que o ecossistema local sustentasse toda a região, segundo o ambientalista Leonardo da Costa.

A floresta do Sabará possui vegetação de caráter secundário e regeneração intermediária, conforme a licença de instalação da AZ Empreendimentos. Isso significa que a vegetação da área já sofreu alguma intervenção humana há mais de 10 anos, mas ainda consegue se regenerar até hoje. 

O Plano Municipal de Proteção, Conservação e Recuperação da Mata Atlântica de Porto Alegre (PMMA), projeto que tem o objetivo de propor ações de proteção da mata, aponta: “Quando o estágio de regeneração for médio, poderá haver a supressão de até 70% da área. Quando o estágio sucessional for avançado, poderá haver a supressão de 50% da área”. “Eles estão classificando essas matas como estágio de sucessão secundária intermediária. Eu acredito que seja avançado. Justamente por conta do tempo que aquilo passou sem ter ação de ninguém”, rebate Murilo Zanini, doutor em Ecologia.

A reportagem entrou em contato com a Secretaria do Meio Ambiente da Prefeitura de Porto Alegre, que preferiu não dar entrevista, e se manifestou por meio de uma nota: “É uma área de propriedade privada que está passando por intervenção e teve o licenciamento aprovado com base na legislação vigente. Em relação às compensações ambientais, o empreendimento está cumprindo a lei, que estabelece as regras e compensações para supressão”.

A área possui um corredor ecológico que conecta campos naturais com áreas urbanas, permitindo o fluxo de fauna e flora local. “Se observar o que tem de vegetação no morro Santana, no parque Marcos Rubin, ali do outro lado e junto com essa área verde, a gente configura um corredor ecológico muito claro… É muito preocupante (a obra) do ponto de vista ecológico, da conservação da biodiversidade”, alega o biólogo Murilo. “Esses casos são o suficiente pra gente não ir à frente com a derrubada. Sendo uma mata de sucessão secundária avançada, vai ser vedada a supressão dessa vegetação, conclui o pesquisador.

DESEQUILÍBRIO NO ECOSSISTEMA: ANIMAIS SILVESTRES

Os moradores reclamam que, ao autorizar a obra, a prefeitura não considerou as consequências climáticas da devastação no local e também não ouviu nem informou a comunidade sobre as transformações no bairro. A construção foi retomada no início de março e, com a aceleração do desmatamento da área, os animais que vivem na região começaram a transitar pelas avenidas, junto com os moradores.

“Eles começaram a sair para baixo, na praça começaram a aparecer rasgando lixo. E aquilo é chocante, né”, comenta Elaine Rodrigues, moradora da região. A vizinhança soube dos Graxains após a repercussão de um vídeo feito por outra moradora da região. “A gente já associou a obra, a gente escuta. Estão roubando a casa deles. Se ouve motosserra, claro. Mas achei que era uma raposa”, diz Cristina Aguiar que fez o vídeo.

Segue abaixo vídeo no link:
Graxaim 1

A invasão do homem e o barulho das máquinas resultaram na migração forçada dos animais. O contato com as ruas causou até o atropelamento de alguns deles, incluindo os de Graxains. “Nós imaginávamos que a empresa já teria tirado eles da área antes de começar essa obra”, fala Elaine Rodrigues que reside no Jardim Sabará há 58 anos.

A GF Serviços Vegetais, contratada pelo Zaffari, possui um plano de manejo que consiste em transferir o graxaim de seu habitat natural para o Pró-Mata, um projeto da PUCRS voltado para a conservação da natureza. Determinado pelo IBAMA, o local está na região nordeste do Rio Grande do Sul e abrange parte dos municípios de São Francisco de Paula, Maquiné e Itati. A área possui “perfeitas condições de receber e abrigar os animais adequadamente”, segundo o documento do plano de manejo.

Em novembro, a bióloga Ana Garcia, responsável pelo manejo dos animais, se reuniu com um grupo de moradores da região para esclarecer e tranquilizar sobre toda a situação. O IBAMA justifica que existe uma série de implicações para o transporte e a recolocação dos animais, e que a autorização foi dada por se tratar de uma área privada e não muito distante.

A comunidade ainda sente desconforto no tratamento que os animais da floresta recebem. “Tu larga o animal numa reserva que a temperatura é fria, não sabe onde ele vai se esconder, ele não sabe onde vai procurar comida e vai encontrar outros Graxaim de lá que vão tomar ele como invasor. Ele pode ser morto por outros da própria espécie ou pode simplesmente morrer de fome”, refuta o protetor de animais Alex Gomes. 

Em junho, foi feito um levantamento da proporção de espécies que haviam no território para iniciar o processo de captura. Até então, o grupo de fauna detectou um casal de Graxaim. O plano de manejo alega: “Recomenda-se que o resgate seja realizado ainda no início do período de inverno de 2024, uma vez que no final do inverno e início da primavera, há risco de gestação”. 

Em novembro, a equipe de fauna capturou um filhote de Graxaim. O casal, visto em junho, foi ignorado e mantido na mata, mesmo com as obras em andamento. A reportagem teve acesso a ata técnica que explica: “O filhote capturado e solto, tem aproximadamente 3 meses de idade, é hábito destes animais permanecerem nas tocas e proximidades até os 2 meses de idade. A partir dos 3 aos 6 meses estão aptos à vida livre. Para segurança dos espécimes e confirmação da quantidade de filhotes, continuaremos o monitoramento com câmeras fixas, próximas aos locais de alimentação”. 

O projeto, recomendado antes pela equipe para evitar qualquer tipo de atrito, foi adiado. O documento de esclarecimento, diz: “Com a confirmação da reprodução ‘in loco’ na área, constatada com a captura do filhote da espécie. Indica-se cautela na execução dos procedimentos de manejo. A supressão da vegetação recomeçará em janeiro de 2025, quando também será retomado o efetivo manejo para as capturas, aguardando assim o tempo hábil dos indivíduos atingirem o estágio juvenil”.

A comunidade também percebeu as trocas de equipe para realizar o manejo, o que gera mais dúvidas na população sobre a transparência do assunto e a capacidade dos profissionais contratados pelas empresas. “Já passaram 3 equipes de biólogos para tentar capturar, todos saíram”, diz a moradora Elaine. 

DESEQUILÍBRIO NO ECOSSISTEMA: LEVANTAMENTO DE ESPÉCIES QUE VIVEM NA ÁREA AINDA NÃO FOI FEITO

Apenas os graxains têm plano de manejo, por serem de porte médio. Para os demais animais, como o ouriço, o gambá, a tartaruga e o lagarto, a empresa terá que contratar um resgatista de fauna. Até agora, não houve a contratação de nenhum especialista e também não foi feito levantamento algum sobre a quantidade de espécies que habitam o local. Os moradores acusam a companhia de maus-tratos. “E os outros? Eles não vão remanejar esses animais, eles vão matar”, deduz a advogada Ester.

A aparição de lagartos e gambás era normal no bairro. “A gente tem eles que são os companheiros da vizinhança”, comenta Cristiana. Ultimamente, porém, os “vizinhos de porta” têm sido encontrados mortos com frequência ao redor da obra.“A morte de um gambá é triste. Mas a sociedade não se importa com gambas. Ele estava embaixo de uma lona da obra”, enfatiza Ester.

Não são apenas gambás ou lagartos que perdem seu território. A aracuã, uma ave, o vagalume, o falcão-relógio e o bem-te-vi rajado também estão vulneráveis à extinção local. “A quantidade de animais que tem ali é incrível, não é só graxaim. Ali tem uma infinidade de animais”, finaliza o protetor de animais Alex.

A nossa reportagem entrou em contato com o grupo Zaffari, que também preferiu não dar entrevista e se manifestou através de uma nota: “A obra realizada pela empresa possui licença de instalação emitida pela Secretaria Municipal do Meio Ambiente de Porto Alegre e está seguindo rigorosamente as regras e normativas estabelecidas pelo órgão. Na região do futuro empreendimento, está sendo conduzido um trabalho de remanejo do Graxaim do Mato. Esse processo acontece através de empresa especializada sob diretrizes da Secretaria Municipal do Meio Ambiente e do Ibama. Desde o início das obras, dois animais dessa espécie já foram capturados e levados para a área de conservação ambiental Natureza PRÓ-MATA, no município de São Francisco de Paula. O monitoramento dos animais, que será mantido ao longo de toda a execução da obra, é realizado por técnicos especializados e acompanhado pelos devidos órgãos públicos”.

DESEQUILÍBRIO NO ECOSSISTEMA: DECISÃO DO MP

Na última quinta-feira (19), o MP abriu ao público o inquérito de investigação referente à megaobra do Zaffari. A decisão foi tomada logo após a reunião com o grupo S.OS Sabará, o vereador Giovani Culau e a deputada Sofia Cavedon. 

De acordo com a descrição do processo, será apurado o dano ambiental causado por possíveis falhas no licenciamento ambiental do empreendimento “Loteamento Jardim Itália”. As falhas envolvem uma avaliação inadequada do estágio sucessional da Mata Atlântica remanescente no local, bem como problemas relacionados ao manejo da fauna silvestre.

“Primeiro terão que investigar se há alguma irregularidade nos documentos, se houve alguma falha na execução do projeto. Aí dependendo da irregularidade o Zaffari pode ser penalizado”, conclui a advogada Ester Freitas.