Opinião: A crueza imbatível e fascinante de “Anora”

Filme começa como um conto de fadas romântico e cômico, mas rapidamente se transforma em um retrato sombrio das desigualdades sociais

Jornalismo Especializado

Anora, dirigido por Sean Baker, é filme que mostra sua potência desde o início. Crédito: Divulgação

Por Kety Katiussa

Já se sabe que o cineasta americano Sean Baker é responsável por filmes crus. “Tangerina”, longa de 2015, foi gravado com um celular. “Projeto Flórida”, de 2017, tem como protagonista uma garotinha de seis anos. Os filmes independentes, que muitas vezes são carentes de recursos financeiros e se opõem às grandes produções cinematográficas, apostam em dois elementos: autenticidade e atuações. E esse é o caso de “Anora”, última obra de Baker.

Logo no início, o longa já mostra sua potência. Ao som da boyband inglesa “Take That”, a primeira cena, que apresenta a personagem-título prende o olhar do espectador. Anora é uma dançarina erótica do Brooklyn. Descendente de russos, a jovem de 23 anos, se sustenta seduzindo clientes da boate que trabalha em Nova Iorque. Sua rotina é dividida pela noite, no glamour das baladas, e pelo dia, ao voltar para casa humilde em que mora localizada na frente a uma linha de metrô.  A atriz Mikey Madison, que interpreta a protagonista, traz naturalidade em todas as cenas. Ela realmente vive a vida daquela garota audaciosa, fuma vape, briga com as rivais da boate, se desentende com a irmã em casa, se deslumbra com o mundo dos ricos e se decepciona com eles. Sua atuação é sem exageros, no ponto. Traz todas as complexidades emocionais da personagem.

Anora se envolve com Ivan, filho de um magnata russo, altamente mimado (financeiramente) e inconsequente. Eles se casam. Quando a família do herdeiro descobre, chama capangas de confiança. Eles mais agem como babás do garoto do que como criminosos para acabar com a união. Um dos capangas se destaca, Igor, interpretado formidavelmente pelo ator russo Yura Borisov. Apesar de ser contratado pela aparência de bad boy e força física, é o único que demonstra compaixão verdadeira por Anora.

Com a anulação do casamento imposta pela família russa, o mundo idealizado pela prostituta começa a desmoronar e o longa mostra, da forma mais cru possível, como os ricos mercantilizam os pobres. O contraste dessa desigualdade está presente durante todo o filme, mas é refletido de um jeito avassalador em Anora e Igor. Ambos personagens tem seus corpos explorados, um para a beleza e outro para a força.

A magia de Anora está nas cenas que, de tão reais, parecem ter sido registradas em documentário. É bruto, ao mesmo tempo que é refinado. É dinâmico e profundo. Começa como um conto de fadas romântico e cômico, tal qual “Uma Linda Mulher”, mas rapidamente se transforma em um retrato sombrio das desigualdades sociais, com caos e crítica que grita, literalmente.

A autenticidade do filme vem da ousadia da direção em suas escolhas cinematográficas e temática que, já presente em outras obras de Sean Baker, traz a tona o sonho americano, a América brilhante e glamourizada em contraste com a realidade das camadas mais populares da sociedade, muitas vezes depreciada e invisível. E, claro, a entrega do elenco, praticamente desconhecido da grande Hollywood, com atuações impecáveis. O resultado é fruto de pesquisa, inúmeros ensaios, jogos teatrais e improviso.

Anora fascina com sua crueza, perfeitamente representada pela dinamicidade, que conversa com o constante movimento e o frenesi que vivemos nos dias de hoje. Fascina também pelo mergulho no mundo selvagem das desigualdades sociais e como elas são presentes, mesmo quando parecem invisíveis.