Crônicas da enchente: Negação, revolta, barganha, depressão e aceitação

Lembro de sentar na cama às oito horas da noite e dar um suspiro bem alto de tristeza.

Fábio Canatta

Por: Thayná Weissbach

Foto: Thayná Weissbach/JC

Palácio do Planalto, 29 de abril de 2024.

Evento chique, roupa desconfortável e o peso da câmera do pescoço incomodava um pouco. O governador do Estado sorria para os repórteres, enquanto a chuva incessante aborrecia os engravatados que saíam do grande evento de uma multinacional. Os primeiros incômodos já transpareciam pelas ruas de Porto Alegre, porém ainda não eram o suficiente para chamar a atenção dos governantes. Por enquanto, apenas alertas de chuva intensa nos próximos dias. O interior do Estado sofria com os efeitos das fortes chuvas, mas os homens da capital mal sabiam o que estava por vir. Pois as pessoas nunca acham que o desastre acontecerá em suas vidas.

Então, no primeiro dia de maio, o Rio Grande do Sul decretou estado de calamidade pública. Para mim, ainda não parecia real. Pessoas saindo de casa, a água derrubando pontes, isolando cidades. Talvez fosse um estado de negação, tal qual os estágios do luto.

Dias depois, o Guaíba passava dos 5 metros. A água tornou-se protagonista dos gramados dos estádios da dupla gre-nal. Chegar para trabalhar no Jornal do Comércio, na avenida João Pessoa, e ver meia dúzia de gatos pingados trabalhando – não era seguro sair de casa, ou não era possível. A situação chegava a ser decepcionante, ver pessoas em frente aos seus computadores, esgotadas emocionalmente (e fisicamente). Foi onde a minha escolha pelo jornalismo estava sendo verdadeiramente testada, pois era a primeira grande cobertura de um desastre da minha vida. Naquele momento, passava da fase da negação para a da raiva.

Olhar aquele prédio lindíssimo da Casa de Cultura Mário Quintana, que agora era tomado pelo Guaíba, com a água alcançando quase um metro e meio, e precisar apontar a lente da câmera era difícil. Ainda quero encontrar o homem que me prometeu uma volta de barco para ver a Avenida Mauá e agradecê-lo por não precisar passar por aquilo, mesmo que as fotos mais importantes de minha carreira talvez pudessem sair dali. Os dias já se misturavam e se emendavam em uma rotina cansativa de trabalho interminável. 

A fase da barganha não aconteceu. Ocorre quando a pessoa tenta se convencer de que a morte poderia ser evitada, o destino pode ser mudado, mesmo que a realidade seja bem clara – aconteceu e não pode ser revertido. Enquanto nas enchentes, o acontecimento poderia ser mitigado? No mínimo. Reformas atrasadas e avisos de pesquisadores, provavelmente conseguiríamos evitar a catástrofe.

E então chegou ela: a fase da depressão. A agonia, a vontade de chorar e o desespero eram as únicas coisas nas quais eu pensava no momento. E assim, pela primeira vez, abaixei a câmera fotográfica – nem todo sofrimento precisa ser documentado em prol do jornalismo. Mesmo com agentes voluntários incentivando “você precisa documentar o que acontece aqui”, “as pessoas precisam saber o que elas estão passando”… Não conseguia, ali foi uma barreira ética que resolvi não cruzar. Lembro de sentar na cama às oito horas da noite e dar um suspiro bem alto de tristeza.

Centro de Porto Alegre, junho de 2024.

A vida voltava “ao normal”, o clima de superação era gritante, os governos pregavam reconstrução tal qual pastores em igrejas. Já os gaúchos levantavam sua bandeira mais alta no mastro, como se houvessem vencido a guerra de suas vidas – o que até poderia ser considerado verdade. 

E agora, a aceitação batia na minha porta, dizendo que era hora de seguir em frente, com a rotina mundana de visitas à redação e eventos econômicos. 

Porém, não sabia se estava preparada para superar isso tudo, diante disso, gostava de pensar que vivíamos num jogo coletivo, onde o tempo passava de minuto a minuto. Não precisávamos pensar no amanhã, no que aconteceria daqui algumas horas, apenas pensaríamos no que aconteceria no próximo minuto. E nesses minutos, desejava nunca mais ouvir o barulho da chuva.