Memórias dos resgates da maior enchente do Rio Grande do Sul

Reportagem conta a história de dois voluntários, fundamentais na sobrevivência de pessoas e também de animais

Anita Ávila

Por Anita Ávila e Vitor Campos

Foto de Sofia Villela

Em maio de 2024, o Rio Grande do Sul enfrentou uma das maiores tragédias naturais de sua história, com enchentes que deixaram o Estado cerca de 30 dias debaixo d’água. Mais de 2,2 milhões de pessoas foram afetadas, 540 mil foram desalojadas, 184 morreram e 25 continuam desaparecidas. A atuação das forças de segurança e, principalmente, dos voluntários foi essencial: mais de 80 mil vítimas foram resgatadas em meio ao caos, incluindo pessoas isoladas em áreas de risco e comunidades inteiras ameaçadas pelas águas. Um ano depois, os impactos ainda são sentidos, mas a solidariedade e a ação coletiva nos resgates permanecem vivas na memória como símbolo de esperança e superação. A nossa reportagem conta a história de dois voluntários, fundamentais na sobrevivência de pessoas e também de animais. 

Voluntário fez salvamentos por 28 dias

Valdomiro Corrales, aos 42 anos, é motorista de aplicativo desde 2019, conhecido como Dodô, foi um dos muitos que saíram de casa para ajudar quem estivesse precisando. Morador do bairro Santa Tereza, na capital gaúcha, ele se juntou aos grupos de resgate assim que as chuvas tomaram as ruas da cidade. “Eu saía daqui do Gasômetro, eu e mais um grupo junto. Pegava comida para gato, ração para cachorro, água e alguns sachês para poder levar para as pessoas necesitadas”.

Durante 28 dias, deixou de trabalhar para poder ajudar nos salvamentos com seu próprio jet ski. Para ter acesso a sua moto aquática, Valdomiro teve que ir ao Gasômetro e pegar carona em um barco. “Eu saí da marina e tive que seguir em direção à BR, porque o Guaíba estava muito forte na época. Fiz o trajeto como se estivesse de carro, pelas ruas”, comentou Dodô. Quando chegou na BR, percebeu que a situação estava ainda mais difícil para os outros do que para ele. “As condições estavam muito complicadas: as pessoas precisando de ajuda, faltando embarcações, e muita gente não reconhecendo o Guaíba (não era possível identificar onde começava e terminava o lago). Decidi que queria ajudar e não parei mais; fiquei só ajudando”, explicou.

Um dos episódios mais marcantes ocorreu no Colégio Estadual de Ensino Médio Eldorado do Sul, que servia de abrigo para centenas de pessoas. Ao chegar, Valdomiro e outros voluntários descobriram que algumas pessoas dentro do colégio estavam vendendo os itens de ajuda humanitária, impedindo alguns abrigados de receberem o suporte necessário. “Dentro do colégio estavam pegando água e comida e vendendo, não deixando as pessoas saírem. Foi muito triste ver aquilo. Conseguimos acionar a brigada e a polícia civil, e a situação foi controlada”, disse ele.

Foto de Valdomiro Corrales
Foto de Valdomiro Corrales

Com o apoio das forças de segurança, Dodô e os voluntários conseguiram garantir a saída das famílias, evitando que a situação se agravasse. “Eldorado já estava 98% submerso, e só a parte do colégio não estava completamente alagada. Esse foi um dos momentos mais difíceis da operação, mas conseguimos retirar todas as pessoas de lá”, concluiu.

Até um navio peruano ajudou no resgate de animais

Os salvamentos, um dos episódios mais marcantes da história do Rio Grande do Sul, não se limitaram apenas às pessoas. Encontrado em meio a fios de energia e botijões de gás empilhados, cercado de água na região das Ilhas, com frio e medo, o cachorro Wilson foi resgatado e depois encontrado pela equipe de voluntariado SOS Animais da Ilha. 

O animal foi salvo das águas por um navio vindo do Peru, sua origem ou destino eram desconhecidos, e logo após o resgate foi encaminhado pelo SOS, através de um pedido de ajuda. Depois disso o caramelo foi encaminhado para a triagem. “Tinha um navio do Peru que estava ancorado, além de ter o cachorro que eles tinham resgatado, que estava com eles faz dias”, relata Carol Egoburo, voluntária do SOS Animais da Ilha.

A arquiteta de 42 anos conta que participa do grupo há quatro anos, a convite de sua vizinha. Ambas já resgataram animais abandonados ou maltratados e encaminhavam para ONG’s. “Eu fazia por conta. No condomínio a gente tinha uma equipe que pegava, castrava, colocava para adoção”, comenta Carol 

Os animais também precisavam de amparo, ajuda e resgate, a princípio 20 mil animais foram resgatados, segundo a Defesa Civil. A busca por eles não era fácil, pois os maiores aliados do homem não tinham como se comunicar, estavam assustados e sem saber como escapar diante de tanta água e destruição.

Em meio à procura por muitos animais domésticos e abandonados, o SOS Animais da Ilha se destacou como um dos maiores exemplos de resgate de animais, até antes das enchentes. A comunidade, já familiarizada com as ilhas dos Mostardeiros e Ilha Pintada, que recorrentemente sofre de cheias, passou as manhãs e as tardes de maio resgatando os animais no entorno do Guaiba. “ A gente ficava com água até a cintura, mas não se compara com essa enchente. Era tão tumultuado que parávamos no meio do caminho, víamos uma situação e já enchíamos o barco”, a voluntária. 

Diferente das pessoas, os animais não tinham para onde correr. Infelizmente, muitos acabaram falecendo. O número dos óbitos não foi divulgado pelo estado, e, entre idas e vindas em meio a tanta água, Carol se deparava com cenas que a afligiam muito. “O que mais partiu o coração é que não eram todos que a gente conseguiu resgatar. Uns se assustavam, fugiam e desapareciam. Teve uma cachorrinha que começou a andar no fio de um muro e ela desapareceu na água”, lamenta.

Felizmente, nem todos os episódios foram assim. Carol, junto com outros voluntários, conseguiu resgatar os animais e deslocá-los para a triagem realizada por outras ONGs e voluntários nas margens da Usina do Gasômetro. “Vimos um pitbull muito magro, em cima de um telhado de uma casa. Ele estava preso e era um lugar onde o barco não conseguia chegar”, conta. Em meio a tanto desastre e desespero, por sorte, uma prancha de surf surgiu na área onde eles estavam tentando resgatar o cachorro. “Um rapaz desceu, ele tava com roupa de mergulho e pulou na água. Pegou a prancha e foi buscar o cachorro”, relembra. 

Os resgates não eram fáceis. As pessoas que se prontificaram a salvar outras vidas constantemente recebiam ameaças. O Rio Grande do Sul estava submerso, mas, infelizmente, ainda havia pessoas que aproveitaram esse momento de caos para saquear e roubar casas. Durante esses episódios, Carol lembra que, em alguns resgates, até mesmo uma policial precisou se disfarçar devido à falta de segurança. Ela, indignada, comenta: “A gente já ficava apreensiva. Além de correr o risco de levar uma mordida de um animal, ainda tinha o perigo de ser assaltado. Para piorar a situação!”

Mas a situação foi melhorando. Aos poucos, os animais foram sendo resgatados, encontrados e cuidados. O SOS Animais da Ilha resgatou cerca de 500 animais, mas três ainda aguardam um lar. Um deles é o caramelo Wilson, que foi resgatado por um navio do Peru. “Disseram que encontraram ele enforcado em um arame e que estava tremendo de frio, mas hoje está super bem”, comenta Carol.