Crônicas da Enchente: Mente sob a água

Fernanda Nascimento

Texto e imagem: Manuela Cassano

Eu costumava pensar que a vida poderia reservar muitos acontecimentos ruins, mas os enxergava longe de mim, pelo menos até o final de abril de 2024. Quando as notícias de chuva forte e os alertas se aproximaram eu não tinha pretensão de sentir medo, afinal de contas, eu acreditava saber o que era o medo e pânico coletivo. Nenhuma catástrofe como as retratadas nos filmes do James Gunn poderia realmente acontecer na vida real. Eu era egoísta, de certa forma, confiava na ideia de que nada me afetaria, contanto que não acontecesse comigo.

Vejo que sempre estive errada. À medida que as chuvas aumentavam, cidades ficavam alagadas, famílias eram desfeitas e casas eram perdidas. Mesmo como jornalista em formação, meu instinto foi ignorar a situação. Eu sabia o que estava acontecendo nas terras em que nasci e cresci, falava sobre o assunto, doava mantimentos, mas estava ausente, mental e fisicamente. As notícias chegavam: pessoas que eu conhecia estavam sem casa, famílias próximas estavam desabrigadas, meu antigo e amado colégio se tornou um abrigo. E, em meio a tanto caos e destruição, eu me sentia complacente com o problema. A culpa da enchente não era minha, mas a omissão de ajuda a quem precisava, nos abrigos próximos a mim, me consumia.

Com o tempo, vieram os pesadelos, alguns recorrentes, principalmente um: não importava onde eu estava, uma grande onda de água vinha, me levava para longe e só era possível ver os estragos que ela causava no caminho pelo qual passava. De dia, sentia um pânico constante, era uma palpitação no peito que não parava nem com remédio.

Não busquei me informar sobre a situação do Estado. Eu tinha medo de uma realidade diferente, em que tudo estivesse submerso. Acostumei-me a ter receio constante pelas pessoas que amava. A água parecia se aproximar, e meu pai dizia: “Calma, estamos em uma zona boa, nada vai acontecer”. E não aconteceu comigo! Eu pensava na imagem dos meus cachorros abandonados quando as águas se aproximavam, me colocava no lugar de quem realmente estava passando por isso. Os abrigos estavam abertos  e eu me culpava por não ajudar o suficiente, por sentir tanto medo mesmo sem ser afetada. Mas será que eu não fui afetada? Será que as enchentes não impactaram todos, desde o morador que perdeu a casa, o voluntário que estava no abrigo, até aquele que estava em casa assistindo televisão? À medida que o tempo passava, eu me castigava mentalmente, por sentir medo. Medo de encarar a realidade de um estado tomado pelas águas.