Medidas pós-enchente: “Um modelo de gestão que desprezou o conhecimento técnico local”, afirma engenheiro

Um ano após a maior enchente da história, Porto Alegre segue exposta ao risco. Especialistas reiteram que, devido à ignorância do governo, é questão de tempo para que uma nova tragédia aconteça

Fernanda Nascimento

Banco de Imagem

Texto: Helena Herter e Vittória Becker

Há um ano, Porto Alegre enfrentava a maior tragédia climática de sua história. As enchentes de maio de 2024 não foram apenas consequência das mudanças climáticas, mas também do abandono de um sistema de proteção que, mesmo projetado para eventos extremos, falhou por falta de manutenção e pela ineficácia da gestão pública. 

O lago Guaíba atingiu 5,37 metros e alagou 46 bairros, afetando diretamente cerca de 157 mil pessoas — 12% da população da capital gaúcha. Ruas, casas, comércios, indústrias e prédios públicos foram invadidos pela água, que além de não escoar, voltou pelas bocas de lobo com força, criando jatos nas ruas. A sensação era de impotência. Muitos se perguntavam: se uma nova enchente ocorresse, Porto Alegre estaria preparada?

O sistema de contenção, criado na década de 1970 para suportar até 6,5 metros de cheia, inclui diques, comportas e estações de bombeamento. Mas quando foi posto à prova, não funcionou. A água entrou por aberturas acima do solo e pelas redes subterrâneas, num efeito de refluxo. Para especialistas, a falha não foi na concepção, mas na manutenção.

“As manutenções elementares nas comportas externas colocadas ao longo do muro da Mauá e do sistema como um todo, simplesmente não tinham a manutenção adequada desde 2020”, afirmou Vicente Rauber, engenheiro especialista em Planejamento Energético e Ambiental. O engenheiro relembrou que o Departamento de Esgotos Pluviais (DEP), órgão que cuidava do sistema, foi extinto em 2017. Desde então, a estrutura ficou sem atenção técnica contínua.

Apesar da prefeitura alegar que vem destinando recursos desde 2022, uma nota técnica do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), divulgada em 5 de maio de 2024, concluiu que as comportas e as bombas de sucção não demonstraram “resiliência” suficiente para conter as cheias. A avaliação foi reforçada por especialistas da prefeitura de São José dos Campos (SP), que afirmaram que as estruturas estavam subdimensionadas e não consideravam o aumento progressivo das chuvas.

Logo após o desastre, um grupo de 48 autoridades  — entre engenheiros, arquitetos, ex-diretores do Departamento Municipal de Água e Esgotos(DMAE), DEP e pesquisadores da UFRGS — entregou um diagnóstico à prefeitura de Porto Alegre. O documento afirmava que o sistema é tecnicamente robusto, mas exige ações urgentes, como a vedação das comportas e o conserto imediato de equipamentos danificados. “Entregamos para ele (Eduardo Leite, governador do Estado) esse diagnóstico e também sugerimos medidas que ainda poderiam ser feitas durante a inundação, nada disso foi feito” afirmou Vicente Rauber. A recomendação mais urgente era reparar as comportas, mas, como foi relatado no manifesto de maio de 2024, “o que foi feito foi retirar algumas comportas do lugar, sem avaliar adequadamente as consequências”.

Em vez de ações corretivas, a prefeitura optou por eliminar oito comportas e substituí-las por trechos fixos de muro, sem consultar os técnicos responsáveis pelo diagnóstico. “As comportas foram extintas e esse processo de retirada foi feito sem nenhuma discussão com as entidades envolvidas”, criticou o engenheiro. “Não houve nenhuma avaliação das casas de bombas atrás das comportas”.

Outras regiões também tiveram impactos das chuvas e as soluções para mitigar os problemas em Porto Alegre precisam de abordagens mais amplas. O atual cenário do Rio Grande do Sul aponta para uma falta de integração e coordenação entre os municípios da região Metropolitana. “Nós não temos problemas apenas em Porto Alegre. A natureza não entende os limites geográficos das cidades que nós, homens, criamos”, declarou Rauber, reiterando que a resposta precisa ser integrada e metropolitana.

Há anos, comitês de bacias hidrográficas existem em rios do Estado, como o Gravataí, mas seguem sem recursos suficientes para operar. “Eu fui um dos que ajudaram a criar o primeiro comitê de bacias hidrográficas no Rio Grande do Sul. Eles existem em todos os rios, mas não funcionam porque não têm os recursos necessários”, explicou Vicente Rauber.

Enquanto isso, medidas já conhecidas e testadas localmente são ignoradas. Durante recente visita aos Países Baixos, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), e o governador Eduardo Leite elogiaram a existência de uma “autoridade da água” com poder nacional e local. Mas, como afirmam os especialistas, estruturas similares já existem no Estado, como os comitês de bacias hidrográficas, que simplesmente não funcionam por falta de recursos. “No Rio Grande do Sul, já temos comitês de bacias hidrográficas, e a criação de uma ‘nova autoridade’ não resolveria o problema, pois as estruturas já existem, mas carecem de recursos”, disse o engenheiro.

“A cheia de 2024 mostrou o colapso de um modelo de gestão que desprezou o conhecimento técnico. Se nada for feito, não é exagero dizer que uma nova tragédia é questão de tempo”, afirmou Vicente Rauber, engenheiro especialista em Planejamento Energético e Ambiental.

“Portanto, muito pouco foi feito, o mais urgente não foi feito e, diante desta situação, lamentavelmente, só posso torcer para que não tenha um evento semelhante ao de maio de 2024, porque, se ocorrer mais uma vez, a cidade estará inundada”, completou o engenheiro.

As perspectivas futuras, nesse cenário, tornam-se cada vez mais incertas. Medidas paliativas seguem sendo priorizadas em vez de ações estruturais. E enquanto planos já elaborados continuam ignorados, cresce o risco de que eventos semelhantes voltem a acontecer — com a mesma intensidade, ou ainda maiores.