Moradia vira arte no Instituto Ling

Migração, memória, arquitetura, meio ambiente e direitos fundamentais são algumas das pautas abordadas nas obras expostas pela 14ª Bienal do Mercosul no Ling

Andrei dos Santos Rossetto

Reportagem de Alana Borges e Vítor Campos

Pinturas, desenhos, escritas, instalações e objetos preenchem as paredes da exposição de Wiki Pirela no Instituto Ling. / Foto: Thiele Elissa

Imagine as lembranças individuais de uma casa. Ou as memórias coletivas de um bairro inteiro. E, ainda, as negligências que acontecem em espaços urbanos e com seus habitantes. As obras de arte expostas pelo Instituto Ling e apresentadas na 14ª Bienal do Mercosul revelam esses e outros pontos de vista, a partir das vivências de morar em algum lugar.

Intitulada pela curadoria do evento como o “estalo do chão de madeira da minha casa que vem com o calor do verão”, a exposição do Instituto Ling conta com obras do porto-alegrense Erick Peres, do cuiabano Gervane de Paula e da venezuelana Wiki Pirela. As obras podem ser visitadas até o dia 31 de maio, de segunda a sábado, com possibilidade de agendamento de visitas mediadas pelo site da Bienal do Mercosul.

A paisagem migrante de Wiki Pirela

A artista Wiki Pirela trabalha com a reflexão dos espaços domésticos na sua arte. / Foto: Reprodução Bienal do Mercosul

A venezuelana Wiki Pirela, que vive hoje no Chile, produziu a obra El paisaje se volvió palabra (“A paisagem se tornou uma palavra”, em tradução livre), especialmente para essa Bienal. O principal tema de sua pesquisa artística é a casa como extensão do que as pessoas são. “Dá para saber muito de uma pessoa pela forma como ela habita o seu lugar. É um tema cotidiano que envolve a todos”, explica a artista. Logo, sua exposição no Instituto Ling não poderia ser diferente.

As primeiras ideias sobre o que seria exposto na Bienal nasceram entre conversas  de Pirela e do curador-chefe Raphael Fonseca. Em seguida, o restante da equipe da curadoria se juntou para dar vida ao projeto. A maior parte do processo aconteceu virtualmente, pois “a distância geográfica entre Brasil e Chile fazia com que tudo ficasse em espera”, revelou a artista, que chegou a construir algumas peças em seu ateliê, mas finalizou tudo no local.

Instalação de Wiki Pirela reflete sobre a sua experiência migratória entre Venezuela e Chile. / Foto: Thielle Elissa

Pinturas, desenhos, escritas, instalações e objetos preenchem as paredes da exposição de Pirela no Ling. A artista costuma trabalhar com o uso de diversos materiais e técnicas, dando preferência àqueles que podem ser reciclados, como papelão, tecidos, madeira e outros itens encontrados. “Prefiro trabalhar com materiais que já tenham uma história, um tempo de uso, porque isso, para mim, tem um valor energético muito grande”. Ela acrescenta que geralmente procura seus materiais nas ruas ou em lojas, quando procura algo específico.

Parte de um processo migratório que a levou da Venezuela ao Chile, a obra de Pirela fala de deslocamentos físicos, afetivos e simbólicos. As texturas dos morros e favelas de Caracas, capital do seu país de origem, inspiraram El paisaje se volvió palabra, criada a partir das memórias da artista. Ela ainda vê no público um coautor das narrativas propostas: “A autobiografia é uma porta aberta para a alteridade, convidar o espectador a lançar suas próprias imagens e vivências dentro de outro corpo”.

Para a artista, estrear na Bienal do Mercosul foi uma experiência inesquecível, marcada pelo encontro com outros artistas, com o Brasil e com novas formas de habitar o mundo.

“Migrar me permitiu entender meu lugar de origem, compreender as complexidades de buscar uma casa em outro território, entender como a pirâmide funciona. Migrar me permitiu politizar meu lar.”

Migrar me permitiu entender meu lugar de origem, compreender as complexidades de buscar uma casa em outro território, entender como a pirâmide funciona. Migrar me permitiu politizar meu lar

O artista Erick Peres é conhecido pelas obras que exploram identidade e periferia. / Foto: Reprodução Bienal do Mercosul


A cidade íntima de Erick Peres  


O porto-alegrense Erick Peres, que atualmente reside em São Paulo, tem sua obra Fim da Cidade exposta no Instituto Ling. Seu trabalho começou há 10 anos, no portão de sua casa, no bairro Jardim Carvalho, localizado na zona leste da capital gaúcha. A obra consiste em uma exposição de fotos pessoais e de arquivos familiares “Trabalho unicamente com imagens pessoais de arquivo familiar, como uma espécie de arqueologia do fantasma”, afirma o artista. 

As obras presentes na Bienal começam do portão de casa para dentro. Há 10 anos atrás, no bairro Jardim de Carvalho, mais especificamente na vila Ipê 1, Morro da Colina e seus arredores, zona leste de Porto Alegre, onde fui criado

“O ponto de partida foi a demarcação do mapa do bairro na parede”, conta Erick, ao descrever o início de seu processo criativo. “Queria, de alguma forma, construir uma ‘sala de casa’ cheia de porta-retratos, contando um pouco da história de origem desse lugar.” Segundo ele, as imagens “necessitam de outras imagens para construir esse universo, como palavras constituem uma frase”. A partir dessa composição de signos, texturas e gestos, o ambiente doméstico foi tomando forma no espaço expositivo, criando, “um diálogo natural com as obras dos artistas presentes no Ling”, explica.

Na instalação de Erick Peres, fotografias, colagens e objetos compõem uma constelação de memórias. / Foto: Thiele Elissa


Sua participação na Bienal do Mercosul marca também um retorno simbólico à sua cidade natal. “Minha trajetória no campo das artes visuais acabou circulando mais em outros estados. Fiz um trajeto por fora para só então conseguir voltar”, relata. De volta a Porto Alegre com uma obra reconhecida, ele afirma que estar presente na Bienal tem um significado especial: “Hoje morando em São Paulo, ter o trabalho reconhecido nesse retorno à minha cidade de origem para a Bienal é muito gratificante, assim como ver outros nomes e pessoas ocupando esse espaço hoje”.
Mais do que apresentar uma instalação, Erick busca transformar a experiência expositiva em algo íntimo e, ao mesmo tempo, político. “Procuro fazer do espaço expositivo um lugar familiar e político. Tornar o esterilizado um pouco mais acolhedor, primeiramente para mim e consequentemente a semelhantes. Mesmo que na ironia”, comenta. Sua intenção é provocar nos visitantes uma reflexão que parte do afeto, mas que reverbera nas tensões sociais e espaciais da cidade. “Naturalmente, cada pessoa vai refletir a partir de sua própria experiência de mundo. Mesmo que seja um lugar aí ao lado, nem tão longe assim”, conclui o artista.

Com mais de 40 anos de carreira, o artista Gervane de Paula trabalha com pinturas, desenhos e criação de objetos. / Foto: Reprodução Bienal do Mercosul


Gervane de Paula une o Caramelo e o Cerrado

Natural de Cuiabá, capital do Mato Grosso, o artista responsável pelo mural colorido exposto em uma das salas do Ling, é Gervane de Paula. Nas paredes, é possível perceber a força de três ecossistemas: o Pantanal, o Cerrado e a Amazônia. “É daí que nasce meu processo criativo”, explica o artista. Os elementos visuais presentes na obra, desde as cores vibrantes, e as formas orgânicas até as figuras simbólicas, compõem uma paisagem muito simbólica para ele.

Como a maioria dos artistas que vivem nessa região são movidos pela energia da natureza, os elementos que compõem as minhas imagens, em especial as que estão no painel no Instituto Ling, fazem parte do meu quintal

Convidado a ocupar um espaço de circulação pública e ampla, o artista conta que foi informado desde o início sobre as características do local: “me disseram que era um lugar onde as pessoas almoçam, jantam, tomam café, de todas as idades… e para mim não foi problema algum”, relata. A criação do mural também passou pela mediação do curador Paulo Henrique Silva, que segundo ele, foi essencial para viabilizar sua participação na Bienal. “Artistas da periferia precisam de eventos como esse para circular com seu trabalho”, afirma.

O mural de Gervane de Paula traz as cores e formas dos ecossistemas do Pantanal, Cerrado e Amazônia. / Foto: Thiele Elissa

Entre os símbolos escolhidos, um em especial ganha destaque: o cavalo Caramelo, que se tornou um ícone de resistência durante a enchente de 2024 no Rio Grande do Sul. Para o artista, sua imagem carrega não só a força de quem sobrevive à tragédia, mas também a de quem resiste diariamente nas periferias do Brasil. “O Caramelo não só representa uma resistência da enchente que vocês sofreram outrora, mas também dos artistas que vivem e trabalham na periferia do Brasil”.

Expor no Sul do Brasil, pela primeira vez, foi um desafio e uma conquista, já que muitas vezes o olhar para a arte está voltado para os grandes centros tradicionais. “Percebo que há um grande interesse por parte dos pesquisadores e curadores, isso é bom e espero mais, pois a minha produção vai além do que está nesse mural”. Gervane ainda espera que sua exposição desperte olhares mais sensíveis e atentos para esse universo por parte do público.

Serviço

Local: Instituto Ling – R. João Caetano, 440 – Três Figueiras, Porto Alegre

Visitação: até 31 de maio, de segunda a sábado, das 10h30 às 20h

Artistas em exposição na 14ª Bienal do Mercosul: Erick Peres, Gervane de Paula e Wiki Pirela