PL da Devastação pode facilitar implantação de cinco usinas hidrelétricas no Rio Grande do Sul

Com as mudanças nas regras do autolicenciamento, as hidrelétricas podem conseguir licença ambiental sem passar pelo crivo do Ibama ou Fepam

Andrei dos Santos Rossetto

Reportagem de Lucas Azeredo

Foto: Lucas Azeredo

“O ‘PL da Devastação’ é o enterro do licenciamento ambiental”. Foi assim que Marina Silva, ministra do Meio Ambiente, definiu a Lei Geral do Licenciamento Ambiental (PL 2159/2021), apelidada de “PL da Devastação”. O projeto de lei foi aprovado no Senado Federal com 54 votos favoráveis e 13 contrários agora está na Câmara dos Deputados para aprovação das mudanças no texto original. As medidas afrouxam as regras da burocracia para a obtenção de licenciamentos ambientais de projetos que podem ou não ameaçar o meio ambiente.

A principal mudança está relacionada à Licença por Adesão e Compromisso (LAC), também conhecida como autolicenciamento. Essa licença já existe, com o responsável pelo projeto declarando em formulários que vai cumprir as normas ambientais exigidas. A nova lei estende a cobertura da LAC para projetos de médio porte e médio potencial poluidor. O STF havia restringido o autolicenciamento a empreendimentos de pequeno porte e baixo potencial poluidor..

Com uma Licença por Adesão e Compromisso, a participação de órgãos técnicos, como o Ibama e a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), seria drasticamente reduzida. Não haveria, por exemplo, mais avaliação prévia de impactos nem análise de alternativas técnicas e de local. Segundo Suely Araújo, ex-presidenta do Ibama, em texto para a Sumaúma, 90% dos licenciamentos ambientais passariam a ser feitos por LAC, incluindo a maioria das licenças de mineração.

No Portal Nacional de Licenciamentos Ambientais, sete iniciativas localizadas no Rio Grande do Sul poderiam ser beneficiadas com a mudança no autolicenciamento. Cinco delas chamam a atenção por se tratarem de hidrelétricas. Curiosamente, todas estão no mesmo rio, na mesma cidade gaúcha (Bom Jesus) e foram solicitadas pela mesma empresa, que usou nomes de suas holdings para fazer os pedidos.

Informações disponíveis no PNLA e na biblioteca da Aneel. Arte: Lucas Azeredo

O município de Bom Jesus é uma escolha curiosa para receber um projeto comercial de tamanho porte, mas não inédita. Ainda na época do Brasil Império, o governo tinha grande interesse em controlar o local no nordeste do estado, que era sede do maior posto de arrecadação de impostos da então província de São Pedro do Rio Grande do Sul.

A pacata cidade de 11 mil habitantes é um microcosmo do próprio estado ao qual pertence. Originalmente, o território era divido entre os Guarani e os Jês, povos indígenas que habitavam a região. Com a formação de novas colônias no Rio Grande do Sul, Bom Jesus recebeu imigrantes dos três principais grupos colonizadores do estado: alemães, portugueses e, principalmente, italianos.

Todas as hidrelétricas ficam no Rio Pelotas, que atravessa o nordeste do estado e dá origem à maior bacia hidrográfica do RS, a do rio Uruguai. As empresas autoras dos pedidos de licenciamento: Múltipla Participações, Alfa – Gestão de Negócios e Futuro Participações, seriam parte do sistema da Estelar Engenharia. No entanto, apenas a Múltipla aparece no site da empresa.

A Estelar coordena mais de 200 projetos hidrelétricos, como os cinco novos no Rio Grande do Sul, que geram mais de 3 mil megawatts — o que corresponde a cerca de 3% da produção total do Brasil em um ano. As cinco novas instalações (137.010 kW) aumentariam em apenas 4% a capacidade de geração de energia da empresa.

Procurada pela reportagem para comentar sobre a escolha do município de Bom Jesus como receptor do projeto, o impacto ambiental calculado e a etapa do processo de obtenção da licença ambiental, a Estelar Engenharia não respondeu até a data de veiculação da reportagem. A empresa também não confirmou se a Alfa e a Futuro fazem parte do núcleo de negócios da Estelar.

Os empreendimentos se estendem por 45 km do rio Pelotas. A instalação mais próxima de Bom Jesus, apontado como “local” do projeto, fica a 25 quilômetros de distância do município. Essa não seria a primeira hidrelétrica da região. Em 2005, foi inaugurada a Usina Hidrelétrica Barra Grande, praticamente onde o rio Pelotas se torna a bacia do rio Uruguai.

À época, a Baesa, empresa responsável pela obra, foi informada do perigo da usina para a flora local, em especial araucárias e bromélias. A resposta de um dos funcionários da Baesa à Folha de São Paulo? “Ah, agora é bromélia? Antes era araucária”.

Localização via satélite das cinco instalações e do município de Bom Jesus. Arte: Lucas Azeredo

Mata Atlântica

Do alto, é possível ver um “mar verde” ao lado das hidrelétricas. Trata-se de Mata Atlântica. Ou, pelo menos, o que resta dela no Rio Grande do Sul. Trinta e um por cento do estado é coberto pelo bioma, que é o mais devastado do Brasil historicamente. Restam apenas 42% da vegetação nativa do RS.

A Mata Atlântica também tem sido castigado pela crise climática, que provocou a remoção forçada de árvores por deslizamentos ou pela enxurrada. Só em 2024 foram 2.800 hectares perdidos por eventos climáticos extremos, segundo o Relatório Anual do Desmatamento de 2024 do MapBiomas, uma rede colaborativa que estuda temas relacionados ao território e ao ecossistema do Brasil.

“A Mata Atlântica é o bioma mais vulnerável do Brasil, com a menor cobertura de vegetação nativa entre todos os biomas. Qualquer perda gera um impacto importante na sua conservação”, diz Natália Crusco, pesquisadora do MapBiomas.

O bioma é essencial para o meio ambiente e tem papel importante na regulação do clima. “A Mata Atlântica é fundamental para absorver a água e regular o clima contra eventos extremos”, afirma Enéas Ricardo Konzen, professor da UFRGS – Campus Litoral Norte e diretor do Centro de Estudos Costeiros, Limnológicos e Marinhos (Ceclimar).

No Rio Grande do Sul, o desmatamento é impulsionado pelo avanço das plantações de soja, milho e trigo. “Não é que a gente seja contra o desenvolvimento, mas o desmatamento é injustificável. Não precisa destruir mais”, complementa Konzen. A mata tem capacidade autorregenerativa, podendo se recuperar até certo ponto. Antes, a Mata Atlântica ocupava quase toda a metade norte do estado.

Foto: Júlia Galarza

Manifestações

No dia 1º de junho, várias capitais do Brasil foram palco de protestos contra a nova Lei Geral no chamado Ato Unificado contra o PL da Devastação. Em São Paulo, os manifestantes tomaram conta da Avenida Paulista. Em Porto Alegre, o encontro foi na Redenção, em frente ao Monumento do Expedicionário.

“A sociedade mundial precisa reconhecer, de uma vez por todas, que as mudanças climáticas estão presentes e que a crise que estamos vivendo é uma crise ecológica”, afirmou Heverton Lacerda, presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), a mais antiga entidade ambientalista do País, durante ato na Capital gaúcha.

Para pressionar o presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), quase 60 entidades de proteção ambiental, entre ONGs e institutos, se uniram para criar um site que envia e-mails no nome do usuário contra o PL para Motta. Ao todo, foram 138.667 pessoas participando da ação.

Ainda, 350 organizações assinaram um manifesto denunciando o tamanho do risco socioambiental que é a aprovação do PL da Devastação. O documento foi entregue para Hugo Motta, ao relator do projeto, o deputado Zé Vitor (PL-MG), e para o líder do governo, o deputado José Guimarães (PT-CE), entre outras lideranças parlamentares e representantes do Executivo.

Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

Futuro do PL

O PL ainda não foi implementado. Hoje, ele tramita na Câmara dos Deputados, onde deve ser aprovado e encaminhado de volta ao Senado, que aprovou o projeto com folga. A data da votação do PL na Câmara está marcada para 18 de julho. No entanto, segundo o relator do projeto, o deputado Zé Vítor, o prazo pode ser antecipado.

Para a Folha, Zé Vitor disse que “algumas alterações devem ser feitas”. “Espero concluir o texto na terça (8) e votar antes do recesso”, disse o deputado. Na quinta-feira (10) o PL deverá ser discutido na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CMADS) da casa, informa a Agência Pública.

No entanto, esse número é menor do que a quantidade de votos favoráveis que o projeto recebeu nas duas casas. Atualmente, a Bancada Ruralista é a maior bancada do congresso, com 324 integrantes na câmara e 50 no senado.

O presidente Lula pode vetar totalmente ou parcialmente a lei, mas só poderá fazê-lo quando receber o texto novo. Se o presidente vetar o PL, o Legislativo terá um prazo de 30 dias para deliberar, havendo uma nova votação na qual serão necessários os votos de 257 deputados e 41 senadores para derrubar o veto de Lula.

A tendência é de aprovação. A ONG Instituto Socioambiental afirma, em análise das consequências do projeto, que sua aprovação resultará no “aumento do desmatamento e da degradação ambiental nas áreas protegidas em níveis que impedirão o Brasil de cumprir suas metas assumidas em acordos internacionais relacionados ao combate ao desmatamento e proteção da biodiversidade”.