50 anos do “Caso ROTA 66” tem culpados impunes e idolatria aos antigos matadores da PM de São Paulo

Policiais Militares que assassinaram três jovens e, depois, forjaram provas contra os mortos seguiram carreira e tornaram-se ícones da cultura de violência e brutalidade da corporação

Lucas Polidori Azeredo

No dia 23 de abril de 1975, os jovens da elite paulistana Francisco Noronha, de 17 anos, João Augusto Junqueira, de 19, e Carlos Ignácio Rodrigues, o mais velho com 24 anos, foram executados por policiais militares da ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) em São Paulo. Depois de uma longa perseguição, o fusca que dirigiam colidiu contra um poste. Os cinco policiais envolvidos afirmaram ter ocorrido uma troca de tiros, o que a perícia confirmou que nunca aconteceu. Os tiros, disparados impiedosamente em meninos desarmados já rendidos, clarearam a madrugada e acordaram os moradores da Rua Argentina, localizada no bairro nobre Jardim Paulista. 50 anos depois, as vítimas não tiveram justiça.

Essa é a primeira reportagem da série especial “50 anos de ROTA 66: A Polícia que mata (e fala)”, realizada pelo Laboratório de Jornalismo (Lab J) da Famecos. Também será publicada a matéria “‘Casos Isolados’: Policiais Militares cometem ao menos um ato de violência desnecessária a cada 2 dias em 2024”, que, por meio de um levantamento exclusivo, revela que, em média, a cada dois dias há um caso de policiais militares denunciados por agir de forma truculenta ou com violência acima do necessário. “Polícia Militar atendeu 43 ocorrências de surtos psicóticos ou esquizofrênicos em 2024; 20 pessoas foram mortas”, que será publicada na quinta-feira (24), é a terceira reportagem que investiga o alto número de mortes em atendimentos de pessoas em crise esquizofrênica por parte da PM. Por fim, o Lab J produziu o podcast que nomeia o projeto, “50 anos de ROTA 66: A Polícia que mata (e fala)”, que rememora o Caso da ROTA 66 cinco décadas depois e o que aconteceu com os policiais militares envolvidos no episódio.Logo após o caso, as famílias, entraram na Justiça Civil contra os cinco policiais envolvidos no caso: o sargento José Felício Soares, o cabo Roberto Martinez e os soldados Francisco de Paula, Cláudio Cândido e Antônio Sória. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), após três anos de tramitação, adotou uma parte das denúncias da promotoria e mandou os policiais militares a júri popular por três ocorrências de homicídio simples para cada réu. Porém, o Supremo Tribunal Federal (STF) interveio e anulou todo o processo, dizendo que a justiça comum não teria capacidade de julgar corretamente o caso. A ação foi transferida para a Justiça Militar, onde os culpados teriam apoio.

(O fusca dos jovens perfurado de balas. Reprodução/Sidney Corrallo – Estadão)

A repercussão dos assassinatos

“Na rua, venceu a brutalidade dos covardes. A vitória aqui é da farsa e da hipocrisia”, exclama Lia Maria Noronha. “É ridículo, vergonhoso. Só faltou o júri dar um troféu de honra ao mérito aos matadores do meu filho”, diz Maria Junqueira. “Se a lei fosse cumprida nesse país, meu filho jamais seria morto. Muito menos eu teria que assistir a esse júri tão deprimente”, afirma Maria Del Fuentes. Essas foram as declarações das mães dos três meninos mortos à imprensa com o anúncio de que os cinco PMs foram inocentados por seus pares.

“Eu acho que o ROTA 66 é uma demarcação, é um ponto de corte”, afirma o doutor em Sociologia e pesquisador em Segurança Pública Marcos Rolim. O caso se tornou emblemático para a Polícia Militar no Brasil, em especial quando, 17 anos depois, um livro foi publicado descrevendo cada um dos atos que levaram à morte dos jovens. “O livro do Caco Barcellos foi, na época, uma bomba. Todos nós, na época que lemos o livro, ficamos muito impactados, porque foi uma reportagem sobre o papel da ROTA em São Paulo, que era uma polícia que vinha muito fortemente na formação da Ditadura com práticas de execução e de sumir com cadáveres”, diz Rolim.

(Caco Barcellos em sessão de autógrafos/Arquivo Pessoal)

Em 1992, o jornalista porto-alegrense Caco Barcellos publicou o livro “ROTA 66: A Polícia que Mata”. A obra revelou detalhes do caso que a nomeia, que Barcellos cobriu à época para a Rede Globo. Entre eles, a descrição da execução, mudanças ilegais na cena do crime protagonizadas pelo comandante da ROTA, Eli Nepomuceno, deturpação de fatos para corroborar com a narrativa policial e a plantação de evidências. Mas, além disso, mostrou como a brutalidade daquela noite não foi uma exceção e, sim, a regra dentro da PM de São Paulo, principalmente contra pessoas pretas e periféricas. Em um trabalho de equipe, o jornalista criou um banco de dados da violência da PM em terras paulistas.

“Nosso Banco de Dados reunia, em abril de 92, a identificação e um rápido perfil de 4.179 mortos. Os números das estatísticas oficiais são bem maiores. Através de fontes variadas é possível se estimar que os PMs mataram entre 7,5 e 8 mil pessoas até junho de 92”, revela Caco em uma passagem do livro. “Com o registro de 4.179 casos de tiroteios no Banco de Dados, acreditamos ter conseguido, depois de dois anos de trabalho, chegar ao perfil das vítimas dos matadores. Homem jovem, 20 anos. Negro ou pardo. Migrante baiano. Pobre. Trabalhador sem especialização. Renda inferior a 100 dólares mensais. Morador da periferia da cidade. Baixa instrução, primeiro grau incompleto. Identificamos exatamente 680 menores mortos”, conclui o repórter. 

“ROTA 66: A Polícia que Mata” venceu o Prêmio Jabuti de 1993 e trouxe uma nova luz sob as mortes quase duas décadas depois do ocorrido e para o tema da violência policial. Porém, o jornalista não saiu ileso da situação. “Caco Barcellos, por conta desse livro, foi obrigado a sair do país pelas ameaças de morte que recebeu desses setores mais repressivos das polícias de São Paulo, que não engoliram o livro. O livro não tinha muito o que discutir, não é uma opinião de alguém. São dados, são números, são fatos que são relatados”, relembra Marcos Rolim. 

Barcellos também expôs os dez maiores matadores da ROTA, produzindo um ranking e contando a história de cada um deles. Após o sucesso do livro, alguns desses policiais sofreram retaliações. Um dos exemplos é Nepomuceno, que chegou a ser indicado para comandar a Guarda Municipal de sua cidade natal, Mogi das Cruzes, no ano 2000. Porém, a exposição do coronel no livro repercutiu fortemente, fazendo com que o prefeito desistisse da indicação. E qual era uma das ideias de Eli como novo comandante da Guarda Municipal? Armar os guardas, assim como a Polícia Militar. 

(Vídeos retirados no YouTube dos canais creditados/Reprodução)

Contudo, os PMs apontados no ranking dos matadores da ROTA não se tornaram párias: viraram heróis da corporação e de parte da sociedade civil. Um local onde encontraram fãs foi em mesacasts, podcasts em vídeo, publicados no YouTube e que abordam o tema da Segurança Pública ou do dia a dia da polícia. Em diversos episódios desses canais, os nomeados no livro são enaltecidos pelo seu trabalho de farda, chamados de os “Antigões da ROTA” por colegas. 

Sobre os programas com participação dos policiais, Rolim diz que eles “não são expressão da democracia, são expressão do lixo cultural, da miséria humana. E também espaço de produção de crimes, porque quando um policial aparece, por exemplo, em um programa onde vai gravar uma opinião dele, ele começa a relatar mortes que ele praticou e trata isso com orgulho porque ele mata os ‘vagabundos’”.

(Comentários encontrados em vídeos e publicações durante a produção da série especial/ Reprodução)

Na sessão de comentários dos podcasts ou dos “cortes” que surgem das entrevistas e nas redes sociais, chovem elogios de usuários para a Polícia Militar e aos matadores (acima). “Nós temos pesquisas no Brasil desde a época da Ditadura onde, mais ou menos, um terço da população brasileira, ao responder pesquisas sobre, aceita a tortura dependendo de qual é o perfil da vítima”, diz Marcos Rolim. 

“Um podcast que está sendo divulgado na internet e que está propondo matar pessoas, torturar pessoas, não pode estar no ar. Esse discurso, que é um discurso proponente da violência, proponente do crime, não pode ter trânsito público. Os responsáveis deveriam estar respondendo o processo criminal por conta disso. Mas não só quem fez o podcast, mas também as empresas que permitiram a divulgação disso através da Internet. Então, acho que há uma questão para ser melhor avaliada e esse é um dos temas chave da nossa época”, conclui Marcos.

Ainda no ar, os vídeos somam milhões de visualizações. Os elogios e histórias absurdas não se reduzem aos “antigões”. Os podcasts formaram uma rede de divulgação de abusos, agressões e da cultura de impunidade à violência:

(Vídeos retirados no YouTube dos canais creditados/Reprodução)

Essa reportagem faz parte do projeto especial do Lab J “50 anos de ROTA 66: A Polícia que Mata (e fala)”. Confira o podcast e as outras reportagens que fazem parte do projeto.