6×1: Produtividade e desumanização no trabalho

Os funcionários submetidos à jornada enfrentam condições desumanas no ambiente corporativo e aqueles que lucram com esse sistema se recusam a oferecer melhorias

Anita Ávila

Foto de Anita Ávila/ Manifestação contra a escala 6×1

A escala de trabalho 6×1 ganhou destaque em diferentes camadas da sociedade brasileira. Segundo a legislação trabalhista, essa jornada determina que o trabalhador atue por seis dias consecutivos, com direito a um dia de folga. De acordo com o artigo 7 da Constituição Federal de 1988, é garantido ao trabalhador um descanso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos, sendo obrigatório que a cada dois domingos trabalhados, um seja de folga.

No entanto, esse modelo de jornada, amplamente adotado por empresas de diversos setores, principalmente o comercial, tem sido alvo de críticas, especialmente entre as camadas mais vulneráveis da população, como os trabalhadores de baixa renda. As principais queixas giram em torno da sobrecarga física e mental, da dificuldade em conciliar a vida pessoal e a profissional, além da precarização das condições de trabalho.

A DESUMANIZAÇÃO DA 6X1 – DENÚNCIAS 

“É um tipo de humilhação, né? Uma delas é para ir ao banheiro. Eles controlavam muito, ao ponto de demitir a pessoa, simplesmente por ir muito ao banheiro”, relata Hellen Rosaura, ex-funcionária do Zaffari. 

Aos 18 anos, Hellen foi diagnosticada com depressão profunda e instabilidade emocional, conhecida como borderline. Durante um ano e cinco meses, ela teve seus direitos trabalhistas negados e vivenciou inúmeras chantagens e abusos psicológicos de seus superiores, inclusive na hora de pedir demissão.“Pensa bem.Tu tem conta para pagar e tu mora sozinha. Se tu sair daqui, talvez lá fora não consiga um emprego fixo. Tu não vai conseguir te empregar, porque o Zaffari é o melhor emprego que existe”, dizia sua supervisora.

A sedução, mascarada de ameaça, é assédio moral, definido como tal quando expõe os trabalhadores a situações humilhantes e constrangedoras, de forma repetitiva. Segundo o artigo “Assédio moral e sexual” da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, tais ocasiões ofendem a dignidade ou a integridade psíquica dos trabalhadores.

A cada pedido de demissão, a ex-funcionária mudava de setor. Isso fez com que ela adquirisse experiência em cinco departamentos: a rotisseria, que serve alimentos prontos para consumo, a fiambreria, área dos “frios” e embutidos, a produção de frutas secas, o atendimento ao cliente e a confeitaria. Mas, em pelo menos um setor, Hellen já teve sua experiência duplicada. “Quando voltei de férias, pedi as contas. Me trocaram de setor de novo”, relembra.

A demissão só foi concedida depois que Hellen ameaçou contratar um advogado. Agora, empregada em outra empresa, ela tem mais tempo para cuidar de si e para se divertir. “Eu posso resolver os meus problemas pessoais sem nenhum estresse, sem nenhuma pressa, eu posso sair mais, eu posso viver mais, sabe? É totalmente diferente”, finaliza.

Diferente de Hellen, o segurança Gesiel, que prefere não fornecer o sobrenome, ainda trabalha no Zaffari. Antes, seu setor era de hortifruti, mas, após um ano de contratação, foi transferido para a segurança. Em menos de um mês, no entanto, não se adaptou e pediu demissão. “Fui falar com o gerente geral para fazer um acordo ou ele me demitir. Porém não teve nenhuma das posibilidades, disse.

Ansiedade e cansaço em excesso eram o que ele sofria. O mercado, já famoso pela forma de organização de escala, consumiu com toda a sua saúde. Em uma rede que era para ter dez funcionários contratados, por turno, a escala era revezada somente por quatro. O trabalho era redobrado. “A gente vive mais com os os profissionais dali, com os colegas da empresa do que nossa própria família e amigos”, finaliza.

Gesiel vê muito mais os seus colegas de trabalho do que a própria namorada. A carga exploratória imposta pelo Zaffari aos seus funcionários fere o artigo 27 do Código do Trabalho, que determina: Descanso Semanal – O trabalhador tem direito a um período de repouso semanal de, no mínimo, 35 horas consecutivas, que, na maioria dos casos, deve coincidir com o domingo.

As folgas, quando não coincidem com o domingo — dia tradicionalmente reservado para o convívio familiar — acabam sendo distribuídas ao longo da semana. Isso faz com que as visitas à casa da avó, da namorada ou dos pais sejam adiadas.O trabalhador que folga no dia da semana sem o namorado, sem a namorada ou sem o filho que está na escola. É desumano para a pessoa, mas é desumano para a família”, comenta Cássio Calvete, professor de economia da UFRGS. 

Foto de Anita Ávila/ Manifestação da 6×1

A DESUMANIZAÇÃO DA 6X1

“Mexer na escala não reduz o tempo de trabalho. Também tem que propor uma distribuição melhor da jornada de trabalho”, analisa Cássio.

A escala 6×1 ganhou visibilidade após a divulgação de um vídeo do vereador Rick Azevedo (PSOL), no qual ele levanta a seguinte questão: “Quando é que nós, da classe trabalhadora, iremos fazer uma revolução neste país relacionada à escala 6×1?”. O próprio vereador associa essa jornada a uma forma de escravidão moderna.

A principal crítica de quem se opõe à escala 6×1 é o impacto negativo na economia. No entanto, o professor da UFRGS rebate esse argumento, lembrando que há 37 anos, na Constituição de 88 usava-se o mesmo discurso quando o tema em debate era a redução da jornada semanal de 48 para 40 horas. “A economia brasileira já estava preparada, mas numa questão no assento político o centrão se organiza para evitar essa conquista. A redução de 40, foi para 44 horas”, comenta Cássio Calvete.

Os embates em torno da escala 6×1 refletem interesses políticos e econômicos, especialmente relacionados à lógica do capital. Ganhos e perdas são inevitáveis: um lado vai gerar desemprego, enquanto o outro gera mais empregos, uma vez que a economia é impulsionada tanto por micro quanto por macroempresas. Sob essa perspectiva, o debate pode até parecer contraditório. Ainda assim, é importante reconhecer que micro e macroempresas tendem a reagir de forma diferente diante de uma redução da jornada de trabalho e sua distribuição. “Essas duas coisas vão acontecer. Tem que saber qual desses fatores vai prevalecer”, acrescenta o professor.

A economia vem apresentando crescimento contínuo ano após ano, mas os lucros gerados acabam, em grande parte, concentrados nas mãos dos proprietários das empresas. Como consequência, persistem as más condições de trabalho, mesmo com a existência de uma legislação que visa proteger os direitos dos trabalhadores. 

A escala 6×1 está no centro do debate sobre a forma de distribuição do trabalho e as más condições que vêm sendo denunciadas. A rede de supermercados Zaffari é apenas uma entre milhares de macroempresas que submetem seus trabalhadores a condições precárias e desumanas. A PEC que propõe mudanças na jornada 6×1, de autoria da Deputada Federal Erika Hilton (PSOL), ainda precisa passar por análise da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania do Senado. O projeto registra alguns avanços, mas enfrenta uma resistência significativa, tanto por questões econômicas quanto pela influência do centrão. “Tem que vencer essa luta, convencendo a sociedade e convencendo a sociedade, a sociedade vai pressionar os seus deputados que vão se ver obrigados a mudar a legislação”, finaliza o professor Cássio Calvete. 

AQUELES QUE SÃO CONTRA A PEC 

A queda da escala é fortemente defendida pelos trabalhadores que sofrem as consequências da 6×1. Por outro lado, empresários e entidades ligadas ao comércio são contrários à medida. Em nota, a Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (Federasul) se posicionou contra a PEC. A entidade afirma que é uma ilusão acreditar no aumento do número de empregos. Além de citar a taxa de desemprego, alegam que será necessária uma reforma na folha de pagamento e que haverá um aumento nos custos para as empresas, destacando que pequenos e médios negócios serão os mais afetados. “Essas empresas não possuem estrutura financeira para contratar novos empregados e cobrir a carga horária reduzida. No Rio Grande do Sul, 95% das 52 mil indústrias têm até 50 funcionários, um fator que se agrava em um momento no qual muitas empresas ainda se recuperam dos efeitos da enchente de 2024”.

A equipe do Laboratório de Jornalismo (Lab J) tentou entrar em contato com a assessoria da rede Zaffari para obter um pronunciamento sobre as denúncias, mas não obteve retorno em nenhuma das tentativas.