A nova forma de censura: o assédio judicial

Dados da Abraji mostram que, no Brasil, são registrados, em média, 50 casos de assédio judiciário por ano.

Fran Geyer

Edição Jornal da ARI / Foto: Pedro Pereira

Em junho de 2023, a Revista Piauí publicou a reportagem O Cupinzeiro, do repórter Breno Alves. O texto falava sobre o programa Médicos pelo Brasil, alternativa bolsonarista ao programa Mais Médicos. A reportagem citava os nomes de um casal envolvido no caso, Diani de Oliveira Machado e Lucas Wollmann, que entraram na Justiça e pediram a censura do material. Embora o  juiz não tenha concordado com a retirada, ele concedeu uma liminar pedindo a censura dos nomes tanto na web quanto nas edições impressas. Como a revista já estava disponível para a venda, o juiz pediu a retirada da edição das bancas, uma ação rara desde a redemocratização. Em setembro, a censura foi retirada e a reportagem pôde incluir os nomes dos envolvidos. 

Edição de Junho de 2023 da Revista Piaui, censurada em uma ação judicial / Reprodução

Esse é apenas um dos 654 casos de abuso judicial que ocorreram no Brasil entre 2008 e 2024, segundo dados apurados pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). O pior ano foi 2020, quando foram registrados mais de 261 casos de assédio judicial no país. Desses, 51 foram movidos por Luciano Hang, dono da loja de departamentos Havan. No mesmo ano, o colunista da DW JP Cuenca foi processado 145 vezes por diferentes pastores evangélicos por conta de um tweet. 

Em 2023, a jornalista Shirlei Alves, do Intercept Brasil, foi condenada a um ano de prisão por sua cobertura do caso da influenciadora digital Mari Ferrer, vítima de estupro e humilhada pelo juiz e pelo promotor. O caso só veio à tona por conta da reportagem de Alves, que é alvo de seis processos cíveis e penais movidos pelo juiz Rudson Marcos e pelo promotor Thiago Carriço de Oliveira. Ela também foi condenada a pagar 400 mil reais a Marcos.

Em fevereiro de 2022, o jornalista Rubens Valente foi condenado a pagar 300 mil reais a Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). A condenação ocorreu após a publicação do livro Operação Banqueiro, no qual Valente caracterizou a atuação do ministro como “bizarra” em duas passagens de um material com mais de 400 páginas. O uso desse adjetivo custou ao jornalista um valor sem precedentes, além da necessidade de direito de resposta ao ministro, caso o livro venha a ser reeditado. No total, a censura no Brasil já custou mais de dois milhões de reais para jornalistas. 

Além dos casos de abuso judicial, entre 2002 e 2023 foram movidas mais de seis mil ações contra a divulgação de informações, cujos motivos variam. Esses dados são provenientes do projeto CTRL + X, também da Abraji. O assédio judicial é definido como a instauração de processos para intimidar e impedir a apuração jornalística. “É o uso do processo para censurar e intimidar jornalistas, então tem um impacto muito grande individual e coletivo”, afirma Letícia Kleim, coordenadora jurídica da Abraji. 

O abuso judicial visa criar cenários de autocensura, ou seja, quando jornalistas evitam cobrir determinados temas por temerem represálias. Numa profissão frequentemente desvalorizada, os custos de uma defesa e a impossibilidade de trabalhar pesam fortemente na decisão de manter o investimento em uma produção jornalística. “Dá um recado para a comunidade jornalística sobre, olha, aqui a gente tem uma pessoa que vai usar processos judiciais para silenciar essas publicações, então há um efeito amedrontador nos outros jornalistas que poderiam estar cobrindo esse tema”, afirma Kleim sobre a censura. 

O papel do jornalismo é o escrutínio e a investigação. Não é responsabilidade dos jornalistas defender ou proteger a honra de uma figura pública. “Se algum agente público tomou alguma atitude que feriu a sua honra ou que vai em contra da sua própria honra, não é responsabilidade do jornalista que só revelou aquela informação. Então ele está tentando atacar a mensagem através do mensageiro, não existe um direito à honra, a honra as pessoas constroem”, conclui Kleim.

A independência jornalística é um assunto fundamental no Brasil, país que viveu anos de uma ditadura militar dedicada à censura da imprensa. A opressão contra jornalistas servia para mascarar o medo do escrutínio das ações violentas e incompetentes do regime. Nesse período, pelo menos 27 jornalistas foram assassinados ou desapareceram por causa de sua profissão.

Apesar de o assédio judicial não ser tão violento quanto a censura imposta pela ditadura, os riscos do abuso de ações judiciais têm sido parte crucial da deterioração de democracias ao redor do globo. Além do dia 3 de maio, Dia Internacional da Liberdade de Imprensa, o Brasil recorda o dia 7 de junho como o Dia Nacional da Liberdade de Imprensa. Nesse dia, em 1977, um manifesto assinado por mais de dois mil jornalistas brasileiros exigiu o fim da censura imposta pela ditadura militar. Isso ocorreu dois anos após o assassinato de Vladmir Herzog, classificado como “suicídio” pelo governo. Seu assassinato só foi oficialmente reconhecido em 1996.