Crônicas da enchente: Antes da água subir

Apresento, nas linhas a seguir, um pequeno guia do que já foi minha casa um dia.

Pedro Pereira

Minha casa em 7 de maio de 2024, quando a água já começava a baixar no Rio Jacuí / Reprodução/Redes sociais.

Vivi a vida toda na mesma casa. Na Ramiro Barcelos, número 133, no centro de São Jerônimo, passei mais ou menos 18 anos: uma maioridade. Era uma casa pertinho do rio, fria e grande, não muito engraçada, com um exagerado número de quartos e cômodos. Por vezes, parecia mais labirinto que casa. Há quem diga que na década de 20, serviu de fábrica de gelo. Apresento, nas linhas a seguir, um pequeno guia do que já foi minha casa um dia.

Na porta de entrada, minha mãe gostava de pendurar uma guirlanda de boas-vindas com uma vaca desenhada, que só saía de lá quando era Natal e a casa era tomada por decoração característica. No cômodo de entrada, depois da porta que rangia, uma máquina de costura antiga, metálica, dava as boas-vindas para quem quisesse entrar. Na sala, sofás grandes que não usávamos há alguns anos, um em cada canto, estavam dispostos, como se implorassem para que alguém neles sentasse. Passavam os dias e noites tapados com mantas amareladas, sendo protegidos de não-sei-o-quê. Em frente, um rack empoeirado com uma tevê que não era ligada há anos, ao lado de dois pequenos pufes brancos que ficavam escondidos sob uma pequena mesa de vidro, com algumas decorações e um baralho de cartas que só saía do lugar quando jogávamos canastra. No teto de madeira, uma pequena luminária pendente com três lâmpadas jogava luz em todo aquele cômodo, ainda que na maior parte das vezes só uma das lâmpadas acendesse. Uma lareira, no canto esquerdo da sala, fazia o cômodo inteiro cheirar à lenha, mesmo que estivesse apagada há anos. Em noites de festa, essa sala servia também como quarto de visitas.

Um pequeno corredor com uma abertura também fazia o trabalho de iluminar. Num pequeno jardim cheio de plantas, um coelho, um sapo e uma garça, todos de cerâmica, fitavam quem passasse por ali. Em frente, um segundo corredor – que já havia sido também uma sala de estar – se abria. Nele, uma estante abarrotada de livros guardava uma infinidade de leituras: clássicos infantis, autoajuda, religiosa, e a popular literatura infantojuvenil. De Harry Potter a Chico Xavier, guardávamos tudo que lemos ao longo da vida nessa estante. No topo da estante, um violão desses de brinquedo, já sem pilhas e com cordas moles, lembrava-me todos os dias de serenatas feitas ao meu pai, minha mãe e minha irmã, numa infância feliz, há menos de dois metros dali. Este corredor tinha duas portas: uma levava à cozinha e a outra, aos quartos. Vamos primeiro aos quartos.

Dobrando a direita deste corredor, em frente, um banheiro. Aconchegante mas gelado, esse era o banheiro que eu chamava de meu. Ao lado do banheiro, à direita, o quarto da minha irmã treze anos mais velha só era ocupado em finais de semana esporádicos. Como ela saiu de casa há muitos anos, o usei por muito tempo para jogar no computador. Na parede, uma foto de quando ela tinha quinze anos, cheia de assinaturas de amigos, colegas e familiares, dava uma ótima lembrança de que o quarto ainda era dela. Os móveis de madeira, antigos, ainda tinham muitas coisas de irmã mais velha: secadores de cabelo estragados, pulseiras de nylon, toalhas, kit de manicure e pedicure, bijuterias e lençóis. De uns anos pra cá, depois do nascimento da minha sobrinha e afilhada, o quarto ficava cheio de bonecas, fraldas, lencinhos e demais cuidados de bebê. E esse era o cheiro maravilhoso do quarto.

Um corredor — sim, leitor, leitora, mais um do nosso labirinto — levava até os últimos dois quartos da casa. Ao fundo dele, o quarto dos meus pais era um sonho de quarto de vida adulta. Livros, fotos da família, uma bela penteadeira e alguns bichinhos de pelúcia faziam parte da decoração simples e afetuosa deles. Quando eu era criança, este mesmo cômodo recebia um visitante inesperado nas noites de chuva. Com o colchão debaixo do braço, eu implorava para fazer uma cama no chão e dormir ali, perto deles. O quarto, mais frio que os outros cômodos por não pegar sol, parece tão quentinho agora, com a lembrança calorosa dessas noites chuvosas. 

Por fim, o meu quarto. Uma memória falha, infantil e distante sempre ecoou na minha cabeça quando tentava lembrar do meu quarto antes de eu chegar nele. Eu imaginava um quarto cheio de véus, todo branco, com bonecas sentadas no colchão e pouca mobília. Depois que eu cheguei, ele não foi mais assim. De móveis amarelos com puxadores de gaveta coloridos, uma colcha colorida e o capricho de dois travesseiros, dormi por alguns anos numa pequena cama de solteiro e um colchão mole. Dormia com uma luz de tomada ao lado da cama, morrendo de medo de escuro. As noites, por tentativa dos meus pais, eram embaladas por um rádio que não saía da 104 FM, com sertanejo da década de 90 entrando e saindo pela madrugada.

Alguns anos depois, este mesmo quarto ganhou móveis brancos de MDF, aqueles paineis de fibra que imitam madeira. E uma parede azul que envolvia a janela grande que se abria para um posto de luz. A cama passou a ser maior, de casal, e um quadro branco foi para a parede azul. O computador, antes pertencente ao quarto da minha irmã, veio ao meu. Na parede, uma caricatura minha, feita quando eu tinha uns 10 anos, mostrava uma criança em uma camiseta do Grêmio, um sorvete na mão direita, um crepe na mão esquerda e orelhas enormes. Nas gavetas, nos armários e nas estantes haviam roupas, fotos, pingentes, documentos, revistas, livros e papéis. Medalhas, troféus, bichinhos de pelúcia, camisetas de futebol. Casacos, calçados, cintos, brinquedos e um videogame antigo. Coisas guardadas para um dia entregar a um filho ou dois. Um quarto dos sonhos, todo para mim.

Na outra porta daquele corredor, a cozinha. Já não era muito usada, desde que uma reforma havia transformado a parte dos fundos da casa em uma grande cozinha e uma sala de jantar. Mas durante toda a minha infância, aquela cozinha significou afeto. Repleta de móveis brancos do mesmo material do meu quarto, o cômodo tinha uma decoração curiosa. Nas paredes, um galo pintado cuidadosamente ficava pertinho da mesa de jantar. O relógio na parede era preto, com figura de ovo frito. Tinha também inúmeros potes cheios de bolachas da minha avó paterna, preparadas na cozinha dela em Santiago, do outro lado do Rio Grande do Sul, e que passavam meses sendo uma guloseima rápida para manhãs, tardes, noites e madrugadas. No canto da cozinha, uma despensa sem alimentos ficava cheia de remédios e suas respectivas bulas. Do paracetamol ao naldecon, guardávamos ali toda a nossa capacidade de automedicação. Desta porta de despensa, uma pequena memória: Há muitos anos, minha mãe guardava os livros de receitas da minha avó materna, já falecida, no fundo deste armarinho, ao lado da porta que levava aos fundos da casa. 

Os fundos da casa eram a parte favorita dos meus pais. Por lá, uma grande reforma no final da década passada representou uma mudança significativa para eles. Depois da aposentadoria, ambos começaram a passar muito tempo naquele espaço. Então, o que antes era só uma churrasqueira e uma máquina de lavar, passou a ser cozinha, espaço de jantar e uma nova lavanderia, bem arrumadinha, como minha mãe sempre quis. Foi de lá que eles viram, nos primeiros dias de maio de 2024, a água invadir o pátio de casa e começar a levar, centímetro por centímetro, pedaços da nossa história. 

No último dia de abril de 2024, decidi não voltar para casa. Minha irmã pediu que ficasse para ver minha sobrinha e afilhada, em Porto Alegre. Na época, fazia todos os dias o trajeto entre São Jerônimo e a capital, saindo às 5 da manhã de casa até chegar na faculdade e o feriado do Dia do Trabalhador proporcionaria algum descanso.

Pelo azar, pelo destino ou simplesmente pelo que aconteceu, um buraco na BR-290 me impediu de pegar a ponte do Guaíba e retornar para São Jerônimo no mesmo dia 1º de maio. E a chuva, que já vinha forte, se intensificou. Na rua da minha casa, o Rio Jacuí já se aproximava, na esquina. Meus pais, na companhia da minha namorada, não acreditavam que a água chegaria, mas já começavam a se movimentar guardando algumas das nossas coisas, priorizando roupas, documentos e eletrônicos. No segundo dia de maio, eles saíram para não retornar. E não retornamos.

É a primeira vez que revisito toda essa história. A nossa história. É preciso deixar claro que falo de um lugar de privilégio. Não ficamos um dia sequer sem um teto acima de nossas cabeças. Passamos noites na casa de amigos e família, depois em um apartamento alugado e agora, um ano depois, finalmente nos mudamos para um novo local, em Porto Alegre. Não passamos necessidades financeiras nem fomos desamparados. Neste meio tempo, me mantive ocupado, trabalhando e estudando. Mas sinto culpa. Muita culpa. De não ter estado lá. De não ter tirado minhas próprias coisas de dentro do quarto. De não me entender como vítima desse desastre que deixou milhares de pessoas sem lar. Sem roupa. Sem comida. Sem documento. Uma tragédia sem precedentes.

Este texto é fruto de um ano inteiro de perda e admito, leitor, leitora, que eu poderia ter escrito justamente sobre tudo que perdi. Sobre a caricatura lavada pela água, sobre todas as bulas de remédio que nunca mais vou ver, sobre os brinquedos que não vou passar aos meus filhos, sobre a parede que não é mais azul, sobre o violão sem pilhas e sobre os livros de receita da minha avó. Mas prefiro lembrar do que a minha casa velha já foi. E como dói pensar em “minha casa” e esta não ser mais aquela da Ramiro Barcelos, 133. A água subiu, desceu e levou muita coisa, mas não levou essa memória. No mês que marca um ano da enchente, prefiro lembrar de como ela estava antes da água subir. Como ela foi pelos 18 anos em que vivi nela. A minha casa.