As tradições de fim de ano da principal religião afro-gaúcha

Limpeza espiritual entre dezembro e janeiro é o principal ritual nas casas de batuque

Luciana Weber

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Com a chegada do fim de ano, diversas tradições religiosas preparam as celebrações para marcar o fim de um ciclo e iniciar um novo período. Nas religiões de matriz africana não é diferente. Uma das principais tradições afro-gaúchas, o Batuque carrega muitas histórias e simbolismos que marcam a relação entre os orixás, seus seguidores e os ciclos com a natureza. Essa tradição reúne elementos de espiritualidade, música, dança e culinária nas celebrações de fim de ano.

No Batuque, as celebrações de fim de ano costumam ocorrer entre os últimos dias de dezembro e os primeiros de janeiro. Os rituais são realizados nos terreiros, que funcionam como espaços sagrados para o culto. Segundo o doutor em Teologia, especialista em História e Cultura Afro-Brasileira pela Universidade Cândido Mendes Hendrix Silveira: “O Batuque é um exemplo único de como a cultura africana foi ressignificada no contexto gaúcho, mantendo elementos essenciais enquanto dialoga com o ambiente cultural local”, afirmou.

Limpeza e Renovação

Um dos principais rituais dessa época é a limpeza espiritual, que busca afastar as energias negativas acumuladas ao longo do ano. Por meio de banhos de ervas, defumações e oferendas, os praticantes procuram purificar o corpo e o ambiente. Hendrix destaca que “a limpeza espiritual é fundamental para o Batuque, pois reforça a conexão dos praticantes com os orixás e prepara o caminho para as energias do próximo ciclo”.

Oferendas aos Orixás

As oferendas são uma parte importante das celebrações. Alimentos como frutas, grãos e pratos típicos são preparados e dedicados aos orixás, em especial aqueles que regem a transição de ciclos, como Exu e Oxalá. Exu, conhecido como o mensageiro entre os mundos, é homenageado no início de todos os rituais, garantindo que as energias fluam corretamente.  

Oxalá, associado à paz e à criação, recebe atenção especial nesse período. No Rio Grande do Sul, as oferendas a Oxalá geralmente incluem alimentos brancos, como canjica e arroz, simbolizando pureza e renovação.  

Festas e Danças

As festas de fim de ano no Batuque são marcadas por danças e cantos ao som do tambor, instrumento usado nas práticas religiosas de matriz africana. As danças representam a conexão entre os praticantes e os orixás, sendo uma forma de expressar devoção e alegria.  “Os tambores são a alma do Batuque, conectando os praticantes com a espiritualidade e reforçando os laços comunitários” explica Hendrix.  

Além do aspecto espiritual, as festividades de fim de ano no Batuque têm um significado comunitário e familiar. Os rituais são momentos de união entre os membros do terreiro, que compartilham refeições, histórias e experiências, fortalecendo os laços dentro da comunidade religiosa. Embora o Batuque seja uma prática amplamente difundida no Rio Grande do Sul, ainda enfrenta desafios relacionados à intolerância religiosa e à desinformação. Líderes religiosos e pesquisadores, como Hendrix, destacam a importância de eventos e iniciativas que promovam o conhecimento e a valorização dessas tradições.  

A história do Batuque no RS

O Batuque começou a se estruturar no Rio Grande do Sul no início do século XIX, entre 1833 e 1859. Os primeiros terreiros começaram nas regiões de Rio Grande e Pelotas. Registros em jornais locais, como o Jornal do Comércio de Pelotas, mencionam cultos de origem africana já em abril de 1878. Em Porto Alegre, as primeiras notícias sobre essas práticas surgem na segunda metade do século XIX, período marcado pela migração de escravizados e ex-escravizados das regiões de Pelotas e Rio Grande para a Capital. Ele se estrutura em torno do culto aos orixás, entidades divinas associadas a forças da natureza e aspectos da vida humana. Cada orixá possui suas particularidades, como cores, comidas, rituais e simbolismos específicos, que são reverenciados nos rituais.“O Batuque não é apenas um sistema religioso, mas um patrimônio cultural que reflete a força e a resiliência da comunidade afro-gaúcha”, conclui o teólogo.