Carga horária de 14h, salário abaixo do mínimo, desvio de função e gorjetas desviadas: a rotina dos trabalhadores nas cozinhas de Porto Alegre

Trabalhadores da área da cozinha relatam que chegam a trabalhar 14 horas por dia para conseguirem complementar a renda para o seu sustento

Marco Aurélio Charão

Reprodução: Emanuell Hartmann

Ao irmos a um restaurante ou pedirmos uma tele entrega, esperamos que a comida seja de qualidade e que, principalmente, o atendimento seja rápido. Para que este desejo se concretize, muitas pessoas estão envolvidas numa dinâmica intensa de trabalho, especialmente no interior das cozinhas. Em ambientes quentes e, muitas vezes, com pouca estrutura, os funcionários estão constantemente sob pressão. Eles enfrentam cargas horárias excessivas – de até 14 horas e não devidamente remuneradas – e, em alguns casos, desempenham funções para as quais não foram preparados. Para completar o cenário, o salário é baixo – pode até ser inferior ao mínimo estabelecido por lei – e as gorjetas dadas pelos clientes nem sempre acabam no bolso de quem deveria. 

João (nome fictício usado para preservar a identidade do entrevistado) trabalha como cozinheiro há 20 anos. A primeira experiência foi na higienização de um restaurante que funcionava dentro de um hospital da capital gaúcha. Logo depois, aproveitou uma oportunidade e foi promovido à auxiliar de cozinha. Hoje, atua como chefe de cozinha na Zona Leste de Porto Alegre. Embora goste de trabalhar na área, reclama da falta de condições nas cozinhas e também de reconhecimento.

Reprodução: Lab J

Mesmo ocupando um cargo de liderança, que o coloca como responsável por toda a equipe da cozinha, diz que a remuneração fica entre R$2,5 mil e R$3 mil. “Eu acho que a gente deveria ganhar mais, ser valorizados. É bastante demanda. Às vezes falta ou troca bastante de funcionários, e a gente tem que cobrir igual. É uma rotina complicada. Trabalhei num lugar que precisava de uns dez funcionários. Mas tinha só cinco pessoas para fazer tudo”, lembra. 

De acordo com o site Salário.com, que traz, mensalmente, a remuneração das atividades profissionais baseado na divulgação dos dados pelo Ministério do Trabalho e Emprego, a média salarial mensal para a função de cozinheiro no Rio Grande do Sul é de R$ 1.763,03. O portal aponta ainda que um chefe de cozinha ganha em média R$ 2.428,53/mês na capital gaúcha. Os valores não incluem eventuais bonificações variáveis, como horas extras e gorjetas. 

Jornadas de até 14 horas de trabalho e gorjetas não repassadas 

Matheus (nome fictício para preservar a identidade do entrevistado) tem 25 anos e é atendente num restaurante na Zona Leste de Porto Alegre, de grande porte, que atende cerca de mil pessoas por dia. A carga de trabalho é pesada, de segunda a sexta: das 7h às 21h da noite. Na carteira de trabalho, porém, está registrado das 7h até às 15h. As horas extras “são pagas por fora”. Pelas 14 horas diárias de trabalho, ganha um pouco mais de um salário mínimo e não vê futuro na atividade. Matheus acredita que, na melhor das hipóteses, pode chegar a gerente, com uma remuneração de aproximadamente dois salários mínimos. “Já deveria ter trocado de área”, lamenta.

Analisando vagas oferecidas em portais de emprego na internet no setor de restaurantes, há casos nos quais são oferecidas remunerações abaixo do salário mínimo, com carga horária de trabalho 6×1. Os empregadores exigem ainda que a pessoa tenha facilidade de se locomover até o trabalho, por se tratar de um horário noturno.

Em resposta às vagas abaixo do salário mínimo, Orlando Rangel, o presidente do Sindicato dos Empregados no Comércio Hoteleiro e Similares, diz que a situação não é admitida de maneira alguma. Ele garante que, quando há algum caso,  conversam com a empresa para “entender a situação”. Segundo ele, o que aconteceria, é que, muitas vezes, se tratam de vagas que não exigem turno integral. Se for o caso de um desrespeito à legislação, é mediado um acordo para que o funcionário receba a diferença. Se isso não acontecer, o caso é levado à justiça do trabalho. Rangel diz que o salário pago por fora do contrato, as gorjetas não repassadas para os funcionários e as condições de trabalho são as principais reivindicações do sindicato. 

Sobre denúncias de não repasse das gorjetas, o presidente diz que acontece com frequência. “Tem muita empresa safada que faz isso, que tá cobrando e não tá distribuindo, e se distribui, disponibiliza só 50% daquilo que recebe”. Quando recebem as denúncias mandam para o Ministério Público do Trabalho que vai verificar a situação. 

De acordo com a legislação trabalhista brasileira, a gorjeta é considerada parte da remuneração do trabalhador. Embora o pagamento seja opcional por parte do cliente, quando feito, deve ser repassado ao funcionário. O rateio deve obedecer os critérios e percentuais acordados entre os trabalhadores e a empresa. O restaurante pode reter um percentual para pagar os encargos sociais. O restante deve ir direto para o bolso dos funcionários. 

De acordo com o presidente, alguns empresários ainda não registram o valor total do salário na carteira de trabalho. O objetivo seria pagar menos Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e contribuição previdenciária (INSS). Outra questão comum seria a contratação para um cargo específico, que na prática acaba envolvendo outras atividades não previstas e acordadas. Por exemplo, um auxiliar de cozinha que acaba responsável pela sobremesa, que deveria ser responsabilidade de um doceiro ou confeiteiro.

Empresários do setor reclamam de falta de mão de obra 

Enquanto os funcionários reclamam das condições de trabalho e da baixa remuneração, os empresários entendem que o maior desafio do setor é a falta de mão de obra. Segundo donos de restaurantes do Centro Histórico de Porto Alegre com quem a reportagem conversou, a situação seria resultado de uma falta de comprometimento dos trabalhadores, percebida pela alta rotatividade e pelo desinteresse. “As pessoas ficam de comparecer no dia e não aparecem. Isso te digo de todas as idades, não é por que é jovem que não tem tanta responsabilidade com o horário”. Ele reclama de funcionários que trocaram de restaurante por uma diferença de R$ 50 no salário.

O Sindicato da Hospedagem e Alimentação de POA e Região preferiu se manifestar por nota. Luiz Guilherme Steffens, assessor jurídico do SINDHA , diz no texto que “sempre orientamos, como entidade, que a legislação seja cumprida, por isso temos cláusulas específicas na Convenção Coletiva de Trabalho, que é o acordo que regula as regras entre os sindicatos patronais e laborais, que busca sempre as melhores condições tanto para os trabalhadores como para os empregadores, com cláusulas que facilitem a realidade laboral tanto na alimentação fora do lar como na hotelaria. São exemplos de cláusulas sobre a taxa de serviço (gorjeta), auxílio aos trabalhadores em casos de falta/morte, prêmios por assiduidade, entre outras tantas. A informação que temos é que nosso setor segue o que está na lei, temos uma assessoria jurídica que orienta as empresas a agir de acordo com o estabelecido tanto na legislação como na CCT, que tem força de lei. Claro que não podemos nos responsabilizar por qualquer empresa que não esteja de acordo com a lei, mas nossa orientação é sempre essa”.