“Casos Isolados”: levantamento exclusivo aponta que Policiais Militares cometem ao menos um ato de violência desnecessária a cada 2 dias em 2024

Agressões, abusos de poder, ameaças, tortura e até assassinatos fazem parte do repertório da PM em todo o Brasil.

Lucas Polidori Azeredo

Por Lucas Azeredo

(Everton Henrique, motoboy atacado com canivete e que foi preso após atentado contra sua vida/Lucas Azeredo)

“Vieram só em mim, como se eu fosse um ladrão qualquer, um pé de chinelo”, diz Everton Henrique da Silva, motoboy na cidade de Porto Alegre. Ele foi protagonista de um caso emblemático na diferença de tratamento que a polícia dá dependendo dos envolvidos. Everton, um homem negro, estava parado perto de um prédio com alguns outros motoboys esperando o chamado de alguma entrega. Um morador idoso do prédio, Sérgio Kupstaitis, começou a reclamar dos trabalhadores pela janela. “Ele reclamava de tudo, de tudo”, afirma Everton. Depois de um tempo, os colegas dele saíram do local. Foi quando o morador viu uma oportunidade. “Ele falou lá em cima na sacada dele: ‘Ah, agora tu tá sozinho. Agora tu vai ver’. E, nesse meio tempo, ele desceu”, conta o motoboy. 

O idoso repentinamente puxou um canivete e atacou Everton no pescoço. Ainda que tenha desviado, o motoboy foi atingido superficialmente. A Brigada Militar foi chamada para atender o caso de tentativa de homicídio e para conter a briga que havia se formado depois do ato violento do idoso, uma vez que Everton respondeu atirando pedras. A Brigada chegou e o morador idoso, um homem branco, não saiu algemado e preso na hora. Foi o motoboy negro Everton Henrique, que foi autuado por estar “alterado”, algemado e levado à delegacia no porta-malas do carro da polícia. “Quem tava errado era ele e ele saiu tranquilo. E eu saí como revoltado no final da história”, relata. O idoso recebeu uma “carona” da BM para prestar depoimento depois de guardar seu canivete em casa. Na delegacia, a situação não foi diferente.

“Na delegacia, o brigadiano começou a falar algumas coisas, dizendo que eu tava alterado. Nesse meio tempo me botaram numa sala fechada. Nessa sala fechada, ele me algemou, pressionando bem forte pra machucar o meu pulso e eu fiquei entre uma hora e meia a duas horas trancado sozinho”, conta. A ação policial foi toda filmada, contudo, a sindicância aberta pela corregedoria da Brigada Militar afirmou que “não houve nenhum tipo de agressão física por parte dos policiais em relação aos presos e que não houve qualquer agressão verbal, nem qualquer tipo de discriminação”. 

Tanto Everton quanto Sérgio foram indiciados pelo mesmo crime: lesão corporal. A Brigada disse que a ação do motoboy não poderia ser considerada auto-defesa. Além disso, a BM indiciou o motoboy atacado por resistência à abordagem, que acabou o colocando no porta-malas de um carro. Mas Everton não foi o único. 21 motoqueiros ou motoboys foram agredidos pela Polícia Militar em 2024. Cinco morreram, com outros 12 feridos com maior seriedade. A categoria dos entregadores, segundo pesquisa publicada em 2023 pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e pela Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), é composta majoritariamente por homens adultos (97%), pretos ou pardos (68%), com apenas o Ensino Médio completo (61%) e que recebem entre 2 mil e 3 mil reais mensais. Everton é um dos nomes na tabela dos “Casos Isolados”.

(Reprodução/Governo do Estado de São Paulo)

183 ocorrências foram registradas em 2024 nas quais um ou mais policiais militares agem de forma truculenta ou com violência acima do requerido. A média é de um episódio a cada dois dias. Esses são apenas os casos em que a atuação da Polícia Militar não é justificável e o fato seja relacionado ao exercício da profissão ou à cultura de violência e abuso de poder instituído na corporação. Cerca de 400 PMs participaram ativamente dos atos que vitimaram mais de 270 pessoas em todo o Brasil. (Confira aqui todos os registros coletados pelo Lab J)

Destrinchando os números, a maioria dos casos envolvem homens sofrendo uma ação violenta. Porém, não é como se mulheres passassem ilesas. 52 entraram na mira da violência policial, com quatro mortes. Os alvos tinham perfis diversos: adultas, adolescentes, idosas, trabalhadoras, estudantes, brancas, pretas, pardas e até mesmo duas grávidas. Ambos os casos de agressão contra mulheres grávidas são muito parecidos: duas jovens de 18 anos tentando proteger alguém de uma abordagem truculenta da Polícia Militar. 

Em Contagem, Minas Gerais, uma jovem então grávida de quatro meses, cuja identidade não foi revelada, estava em casa com seu namorado, um repositor de supermercado de 20 anos, quando policiais entraram no domicílio procurando o homem, supostamente envolvido com uma tentativa de homicídio. Os PMs tentaram tirar a jovem à força do sofá onde sentava, provocando uma reação agressiva do namorado. Durante a briga que se armou, um dos policiais empurrou a grávida, que caiu no chão. Além disso, foi disparada uma arma de eletrochoque que atingiu a perna dela.

O outro caso, esse mais trágico, também ocorreu em Minas Gerais, na cidade de Governador Valadares, e culminou na morte de Thainara Vitória Francisco Santos. Ela foi defender seu irmão autista, de apenas 15 anos, de uma abordagem violenta da PM mineira quando supostamente se sentiu mal depois de ser detida. Porém, o laudo do legista, obtido com exclusividade pelo The Intercept Brasil, revela que a jovem grávida de 18 anos de idade foi violentamente espancada e morreu de asfixia causada por estrangulamento. O relatório do caso apresentado pela Polícia Militar diz que Thainara estava viva quando foi colocada no carro e que passou mal dentro do veículo, mas o laudo aponta que a vítima morreu antes mesmo de chegar à Unidade de Pronto Atendimento. Os policiais militares não sentiram a urgência do atendimento, uma vez que demoraram dois minutos para retirá-la da viatura e a levar para dentro da emergência, conforme revelam imagens da câmera de segurança.

Os jovens também não escaparam da truculência e da brutalidade. Ao menos 52 vítimas confirmadas, uma vez que ataques contra grandes grupos de pessoas não contabilizam o número de agredidos nesses casos. Desse total, 21 eram menores de idade. A maioria tinha entre 15 e 17 anos, mas três crianças com menos de 10 anos estão no registro como vítimas. Em 2024, cinco menores de idade morreram por conta da atuação da Polícia Militar no Brasil.

Em Ibirama (SC) e Salvador (BA), dois adolescentes, um de 15 e outro de 17 anos, foram executados quando já tinham se rendido à Polícia Militar. Em ambas ocorrências, os policiais disseram que usaram armas de fogo em legítima defesa, apesar de vídeos comprovarem que os jovens já não eram mais ameaça para os PMs. Eles não foram os únicos menores sumariamente baleados até a morte em 2024. 

Glicério de Souza Filho, de 15 anos, queria tomar um refrigerante depois da aula. Estudante no período noturno, passou em uma adega no caminho entre a escola e sua casa quando foi fatalmente baleado por policiais militares em ação no Morro São Bento, periferia de Santos (SP). Os policiais disseram que foram recebidos com tiros. Também no Morro São Bento, a vítima mais jovem. Ryan da Silva, de 4 anos, morreu com uma bala que partiu de um fuzil da polícia em confronto com criminosos, segundo o porta-voz da PM Emerson Massera. 

Mas, a Polícia Militar não precisa de armas para matar menores de idade. Em Guarapari (ES), um menino de 16 anos foi levado por PMs até um local escondido e o agrediram com brutalidade, segundo testemunhas que presenciaram a ação. Eles tentavam arrancar informações sobre o tráfico, uma vez que suspeitavam que o jovem era ligado ao crime. Dois dias depois, o adolescente teve morte cerebral decretada. Os policiais militares afirmaram que ele escorregou em uma ribanceira e bateu a cabeça em um muro.

O local de moradia também influencia as chances de uma pessoa se tornar vítima nas mãos da Polícia Militar. 30 das 183 ocorrências aconteceram dentro de bairros e comunidades periféricas, sem contar seus moradores atacados em outras regiões de suas cidades. Nesses episódios, pessoas pretas e pardas viram alvos permanentes para a PM. Mulheres e jovens inclusos. Trabalhadores, em especial.

(Manuel sendo atacado por PMs/Imagem de vídeo gravado por testemunhas)

É junho, no meio da tarde no bairro Tatuapé, região nobre da Zona Leste da cidade de São Paulo. O comerciante Manuel Ferreira de Albuquerque, de 42 anos, está vendendo suas pipocas para os transeuntes da rua Vilela quando é abordado por PMs. Os policiais perguntam a Manuel se ele tem a autorização da prefeitura paulistana para vender comida na rua, a qual ele não tem. De repente, o pipoqueiro acorda com a cara no asfalto, vítima desmaio durante a abordagem. 

Um dos policiais aplicou um golpe chamado “mata-leão”, proibido na Polícia Militar de São Paulo desde 2020, e levou Manuel ao desmaio. Não contente, o policial ainda colocou o joelho sobre o peito do homem desacordado. “Por que passar por isso? Sendo que você está trabalhando? Eu apaguei, urinei, não me lembro de nada. Humilhante, todo mundo vê”, desabafou à época o comerciante ao programa “Balanço Geral”, da TV Record. O caso foi levado para a Corregedoria da Polícia a pedido da Ouvidoria, que denunciou não só a agressão, mas também o uso indevido do spray de pimenta por outro PM, que tentava afastar as pessoas filmando a ação.

“Confiamos na apuração rigorosa do órgão correcional e acompanharemos os desdobramentos do caso até sua conclusão final, pois procedimentos que ferem as práticas da corporação e a dignidade humana precisam ser condenados, inclusive em favor da maioria da força policial, que faz seu trabalho com profissionalismo e respeito à população de nosso estado”, afirmou, em nota, a Corregedoria paulista. O ato violento foi considerado por parte da polícia como “erro de procedimento” e não houve conclusão da investigação até o momento. Seis meses depois, ainda em São Paulo, uma mulher e um homem preto em situação vulnerável, em casos separados, foram vítimas do mesmo golpe “mata-leão”, sem punição aos oficiais.

(Cacique Naílton e sua irmã, Nega Pataxó, deitados, feridos durante o ataque/Fotografia obtida pelo Intercept Brasil)

Além de pessoas pretas e moradores de comunidades da periferia social, outros alvos preferidos da Polícia Militar brasileira são aldeias indígenas. Três “casos isolados” foram registrados no levantamento que, ao todo, resultaram na morte de duas pessoas, uma líder indígena e um jovem de 23 anos, mais de 20 pessoas feridas, incluindo crianças e idosos, e até mesmo denúncias de tortura. Um desses casos foi uma armadilha cruel.

No dia 21 de janeiro de 2024, os Pataxó Hã-Hã-Hãe foram vítima de um ataque brutal por parte de fazendeiros com apoio da PM do estado da Bahia. Os ruralistas expulsaram à força os indígenas de sua ocupação na Fazenda Inhuma, no sudoeste baiano, que fazia parte do território original dos Pataxó e que foi vendida ilegalmente décadas atrás. Segundo o Cacique Naílton, 20 policiais chegaram em viaturas. O comandante, Paulo Augusto Santanna, queria conversar. Após o cacique apresentar documentos de posse da terra, Santanna voltou ao seus comandados e, de repente, começaram a abrir caminho para fazendeiros, que dispararam contra os indígenas.

Naílton foi atingido na região do abdômen e ficou deitado no chão ao lado de sua irmã, Nega Pataxó, também ferida por um disparo. Cacique Naílton gritava para que a polícia prestasse o devido socorro, em especial à sua irmã, que estava no fim de suas forças. Por fim, o cacique sobreviveu depois de passar por cirurgia e ficar internado, porém Nega Pataxó já chegou morta no hospital. Os agressores eram do movimento de milicianos ruralistas chamado Invasão Zero, que reúne 5 mil apoiadores, entre eles Jair Bolsonaro e o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles. Quase 200 fazendeiros estavam no grupo de mensagens criado para a ofensiva, com tom militar, contra os Pataxó.

Na véspera do ataque, Itamar Cardoso Oliveira, membro da comunidade indígena, levava cinco parentes de carro até a Fazenda Inhuma. Foi quando uma viatura da PM começou uma perseguição aos seis. Itamar decidiu parar. “Chamaram a gente de vagabundo. Nos mandaram abaixar a cabeça e ficar quietos. Bateram com pedaços de tábuas nas minhas costas e chutavam os dedos dos meus pés. O tempo todo eles perguntavam onde é que a gente tinha escondido as armas. Só que a gente não tínhamos arma nenhuma”, disse Cardoso ao The Intercept Brasil. Itamar ficou com as costas repletas de hematomas, vítima de tortura na luta pelo direito de viver na sua terra.

(Reprodução/Associação Paranaense do Ministério Público)

“Eu acho que nesse ponto há uma grave responsabilidade dos comandos, das polícias militares, porque eles são coniventes com isso. Se não fossem coniventes não aconteceria. É que esses policiais da ponta percebem que não dá nada, então é como se isso funcionasse como um estímulo”, diz o doutor em Sociologia e pesquisador em Segurança Pública Marcos Rolim. “É uma concepção mesmo, uma concepção anti-humanista, bandida de segurança pública. De gente que bate no peito dizendo que é contra bandido, mas pratica crime e é conivente com o crime o dia inteiro”, conclui. Marcos ainda chama a atenção para um ponto importante do levantamento dos “Casos Isolados”.

“Esses 183 casos são a ponta do iceberg. É aquilo que foi flagrado por alguém que filmou ou denunciou o que estava acontecendo. Tem uma quantidade muito maior de cenas de violência e de arbitrariedade que não são filmadas, que fazem parte do cotidiano e que a gente nunca vai ficar sabendo”, afirma Rolim. Quando não há filmagem, as denúncias não chegam nos veículos, que não a reportam pela falta de provas concretas, criando um ciclo de subnotificação das ações violentas da PM.

Hoje, um recurso para mitigar a violência policial é a adoção universal das câmeras corporais, dispositivos que gravam a ação do policial e que não podem ser desligadas pelo oficial. No RS, em seis meses, o número de sindicâncias e processos disciplinares abertos contra brigadianos militares caiu em 42% segundo o Programa RS Seguro. Marcos Rolim diz que a iniciativa das câmeras corporais é “uma iniciativa super importante. As câmeras de policiamento são recursos usados no mundo inteiro com muito estudo já feito a respeito do impacto dessa tecnologia na atividade policial. Quando há um funcionamento permanente da câmera, todos os estudos do mundo inteiro a respeito do impacto dessa tecnologia na atividade de policiamento mostram claramente coisas super positivas”. 

Esta reportagem faz parte do projeto especial do Lab J “50 anos de ROTA 66: A Polícia que mata (e fala)”, que contém duas reportagens e um podcast especial sobre os 50 anos do caso ROTA 66.