Centro Histórico da capital gaúcha guarda histórias mal-assombradas 

Passeios, pesquisas acadêmicas e até um café temático ajudam preservar relatos que compõem o passado sombrio de Porto Alegre

Andrei dos Santos Rossetto

Reportagem de Manuela Saudade 

Decoração do Café Mal Assombrado, na Fernando Machado, remete a elementos de terror. Foto: Manuela Saudade

Aqueles lugares conhecidos e rotineiros, que são sempre vistos da mesma forma todos os dias, podem esconder histórias não tão conhecidas, macabras e assustadoras. Algumas tradições e histórias da cidade de Porto Alegre, por muitos motivos foram apagadas ou ocultadas ao longo do tempo.  

Passeios pelo Centro Histórico buscam desvendar esse passado. O professor Nestor André Kaercher realiza caminhadas acadêmicas com os alunos da disciplina de Prática de Geografia, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “É fundamental que a gente conheça a história, porque assim a gente sabe de onde a gente veio e quem é. Assim, tu podes projetar um pouco do que tu queres ser e o que a sociedade quer que tu sejas”, explica Kaercher.  

Sobre o lado oculto e lendas dos locais do Centro, o professor Kaercher entende que a história oral dos lugares, passada de geração em geração, também é relevante em uma país que ainda precisa se conhecer mais. “Uma forma inicial de conhecer os lugares é saber o que as pessoas têm a dizer sobre eles, não importa se isso é científico ou não, é parte da história”, afirma o professor. 

Na rua Coronel Fernando Machado, se encontra uma construção de fachada simples. À primeira vista, se assemelha a um simples café. Mas, para quem faz uma pausa  para ler o nome do local na placa indicativa,  a curiosidade é despertada: Café Mal Assombrado. Ao entrar no local, ele faz jus ao nome. Estantes com livros antigos, bonecas assustadoras e quadros sinistros. Não raramente, motoristas de aplicativo costumam se assustar com o nome do local para onde estão transportando os passageiros. Vestindo roupas de época, com babados estilo vitoriano, o proprietário, André Hernandez, recebe a reportagem com tom amigável. 

“Primeiro surgiu a Caminhada Mal Assombrada, como uma brincadeira no Facebook para cinco amigos. Tivemos que cancelar porque 1.800 pessoas se inscreveram”, relembra. Logo, então, começou o projeto da caminhada mal-assombrada pelo Centro para o público aberto. Com o sucesso, Hernandez percebeu a necessidade de ampliar o negócio. “A galera queria  um lugar para se encontrar e falar sobre estes assuntos. Daí, surgiu a ideia do café. Eu queria muito que fosse aqui, na Coronel Fernando Machado, antiga Rua do Arvoredo”, diz. Neste momento, ele utilizou um tom como quem diz “você entende o porquê, correto?”. Ele se referia ao episódio conhecido como “Os Crimes da Rua do Arvoredo”. 

A ideia de que uma das lendas mais conhecidas do Estado tem suas origens ali nem passa pela cabeça da maioria de quem caminha Fernando Machado. Em 1864, dois moradores da então Rua do Arvoredo, como era chamada, o brasileiro José Ramos e sua esposa, a húngara Catarina Paulsen, viviam de roubar homens de alta classe. A lenda conta que eles utilizavam um método incomum para se livrar das provas de seus crimes: o canibalismo. Eles teriam entregue os corpos sem vida de suas vítimas ao açougueiro alemão Carlos Claussner, que teria feito a linguiça de seu comércio a partir dos restos mortais humanos.  

 “Houve um caos que mexeu com a sociedade no quesito status quo, no sentido de comer a carne [humana], que é um grande tabu para a sociedade. Porto Alegre fez questão de esquecer ou confundir esta história”, relata. O proprietário ainda opina que o gaúcho é um povo cheio de percalços macabros em suas histórias e guerras, mas não gosta de relembrar o lado sombrio de sua história. “Para entender o mal é preciso estudá-lo, mas os gaúchos continuam repassando a ideia de que somos alegres e felizes, apenas. Olhar para as sombras da cidade é uma jornada de autoconhecimento”, diz.  

Os crimes da Rua do Arvoredo teriam sido propositalmente bagunçados com o passar do tempo, diz o empresário. Sabe-se que houve um crime e que Catarina Paulsen o teria confessado às autoridades, fazendo com que José Ramos fosse processado. Porém, boa parte dos documentos foi perdida e a documentação existente está incompleta para revelar se o canibalismo existiu ou não.  

Outro local que preserva a história de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul é o Museu Júlio de Castilhos, na Duque de Caxias. Atualmente, o lugar guarda um acervo sobre a cultura indígena e a Revolução Farroupilha. O museu preserva os ambientes originais da antiga moradia de Júlio de Castilhos.  “É o cara mais importante do Rio Grande do Sul e dificilmente alguém vai superá-lo. Trouxe o positivismo e foi o responsável pela guerra das degolas. Eu nem sei o que tinha de magnetismo nesse homem. Mesmo não gostando dele, as pessoas tinham uma atração violenta por ele”, opina Hernandéz, que estuda o tema de forma independente. 

Júlio de Castilhos foi presidente do Rio Grande do Sul, o equivalente a governador, e um dos grandes nomes da Revolução Federalista (1893-1895). “De forma irônica, logo ele morreu no local, por conta de uma cirurgia na garganta”, explica. Hernandez dá ênfase na palavra “irônica”. Isso porque, Castilhos foi líder do governo pela Guerra das Degolas, como ficou conhecida a Revolução Federalista. O apelido foi dado em razão da brutalidade dos métodos de execução dos adversários e desertores.  

 A esposa Honorina se suicidou tempos depois da morte do marido em um dos quartos da residência. Ela estava em depressão profunda porque não aceitava a morte. A casa se tornou um museu ainda durante o ano da morte da esposa do Júlio de Castilhos, em 1903. O museu é o mais antigo do Estado. Desde que está aberto à visitação, tem a fama de mal-assombrado. Circulam boatos, até os dias de hoje, de que visitantes e funcionários teriam visto espectros fantasmagóricos. 

Indo até o local, é impossível não reparar na atmosfera de casa mal-assombrada, digna de um filme de terror. Mas vale ressaltar a importância histórica do museu. “Os tours mal-assombrados e as lendas trazem muito público para o local, o que é muito legal, mas sempre busco trazer a parte histórica dos fatos para os visitantes à procura de fatos sobrenaturais”, diz Camilla Perotto, funcionária do local. 

O Tour Mal-Assombrado de Porto Alegre teve problemas com algumas igrejas inseridas no passeio, conta seu criador André Hernandez. Elas não gostaram de ter o nome associado ao oculto e notificaram o tour. “Eu achei que ia ser reconhecido até por mostrar a igreja para as pessoas!”, indigna-se Hernandez. “Tu imagina se o Victor Hugo fosse notificado pela igreja de Notre Dame por contar sobre o corcunda que é maltratado e assusta os outros? É um personagem cultural criado que deu visibilidade para a igreja”, reclama. Isso leva exatamente ao que vem sendo tratado, a tendência dos porto-alegrenses de omitir partes da história como uma tentativa de torná-la mais bonita e heroica. “Tem coisas muito mais pesadas para falar de algumas igrejas daqui, que chocaram a sociedade,  e que eu nem falo”, comenta o criador do tour, em tom de suspense. 

Em contrapartida, existem locais que têm acontecimentos macabros bem documentados, mas pouco reverberados nos dias atuais. Um deles é o Largo da Forca, conhecido como Praça Brigadeiro Sampaio, localizado próximo ao Museu do Trabalho, no início da Rua da Praia. É a praça mais antiga da capital. Um lugar reurbanizado em 1965 e repleto de árvores. No entanto, foi palco de acontecimentos brutais. A praça que já possuiu várias finalidades e nomes, foi terreno de execuções legais através de enforcamentos e, por esse motivo, foi chamada de Largo da Forca.  

Praticamente todas as vítimas desta morte assistida eram escravizados, lá aconteceram 28 enforcamentos entre 1821 e 1857. Acredita-se que muitas mortes não documentadas possam ter acontecido no local. De acordo com Hernandez, “as leis mudavam e demoravam para chegar aqui. Quase 10 anos após os enforcamentos terem sido proibidos, José Ramos, um dos responsáveis pelos crimes da Rua do Arvoredo, foi condenado à morte e mandaram a sentença dele para o Rio de Janeiro, sendo negada, porque já estava proibida a pena de morte. No século XIX, a morte estava por todo lado, os cachorros andavam pelas ruas com restos humanos do cemitério, a pessoa que morria na rua, às vezes, ficava dias lá”, explica. Existem boatos de que pessoas que moram por perto da praça veem as imagens fantasmagóricas de homens pendurados pelo pescoço nas árvores até hoje.  

Reportagem produzida para a disciplina de Reportagem e Entrevista, sob supervisão da professora Paula Sperb.