Escrever é Resistir: A Literatura LGBTQIAPN+ no Brasil

Mês do Orgulho relembra a importância da produção artística e cultural desta parcela da população

Fernanda Nascimento

Por Laura Dacol

Foto: Reprodução

O mês de junho marca o orgulho LGBTQIAPN+ e destaca as vozes que resistem, entre elas, a literatura. No Brasil, a produção literária LGBTQIAPN+ historicamente enfrentou repressão e censura, mas vive hoje uma fase de visível expansão. Nesse cenário, a figura de Cassandra Rios emerge como uma pioneira, sendo a primeira autora brasileira a se sustentar pela literatura lésbica, embora tenha sofrido intensa censura durante a ditadura militar. Apesar das adversidades, essa produção nunca deixou de existir, persistindo e pavimentando o caminho para a diversidade de vozes que vemos atualmente.

A escritora lésbica Natalia Borges Polesso, autora de “Amora”, obra premiada com o Jabuti em 2016 na categoria Contos e Crônicas, observa que a literatura LGBTQIAPN+ vem crescendo, embora “ainda não esteja em um lugar ideal”. Ela destaca uma pluralidade maior, tanto entre autores e autoras quanto na diversidade de personagens, mencionando o “boom de literatura jovem adulta, LGBTQIAPN+” com a forte presença de autores em bienais e eventos literários nos últimos anos.

O impacto dessas obras, segundo Natalia, é profundo. Ela relata receber um grande volume de mensagens de leitores de “Amora”, livro que completa dez anos em 2025, demonstrando uma contínua identificação, inclusive de pessoas mais velhas. Para a autora, “a qualquer idade, a gente lê alguma coisa e se sente identificado”, e esse processo de reconhecimento transforma a leitura em um exercício de alteridade. “Ver-se em algum lugar cria repertório e é muito importante para a nossa vida”, afirma. 

Profissionalmente, o livro “Amora” “mudou totalmente, radicalmente” a vida de Natalia. A autora já era conhecida antes da publicação, mas a repercussão da obra ampliou sua projeção: passou a receber convites para feiras literárias, coletâneas, palestras em universidade, além de se tornar referência em trabalhos acadêmicos. A prova do ENEM integrou um trecho do conto “Vó, a senhora é lésbica?”, a uma questão de interpretação do caderno de Linguagens na edição de 2018. Com traduções para o espanhol e o inglês, o livro ainda abriu caminhos internacionais, proporcionando experiências e oportunidades que a autora não imaginava possíveis. 

O alcance de “Amora” também reflete um movimento mais amplo: a crescente visibilidade das obras LGBTQIAPN+, especialmente entre o público jovem. A influência das plataformas digitais é notável. As redes sociais têm se mostrado ferramentas fundamentais para a divulgação e circulação dessas produções, ampliando o alcance de autores e autoras historicamente marginalizados pela mídia tradicional. Polesso destaca a “forte presença dos autores divulgando suas obras” e eventos nas redes sociais, que aproximam o público das obras e criam novas formas de engajamento. 

Além de promover um contato direto entre autor e leitor, as plataformas digitais transformaram os modos de distribuição, permitindo que livros de pequenas editoras ou vendidos diretamente pelos escritores cheguem ao público. Para Natalia, “tudo isso muda a nossa dinâmica de leitura e do que a gente acha que é o mundo da literatura”.

A presença de personagens LGBTQIAPN+ na literatura brasileira não é recente. “O Bom-Crioulo”, de Adolfo Caminha, publicado em 1895 é considerado o primeiro romance a tratar explicitamente da homossexualidade. A obra narra a relação entre Amaro, um ex-escravizado que entra para a Marinha, e Alexio, um jovem marinheiro. O livro enfrentou forte rejeição e censura e sua circulação foi retomada na década de 1950. A  partir dos anos 1970 e 80, as obras passaram a se afastar de representações estigmatizantes, oferecendo relatos mais respeitosos e sensíveis sobre diferentes vivências. Um dos nomes centrais desse período é Caio Fernando Abreu, cuja obra mergulha nas complexidades do desejo, da identidade e da solidão em meio ao contexto da ditadura militar e da epidemia de HIV, marcando profundamente a literatura. O movimento de publicação por autorias LGBTQIAPN+ ganhou ainda mais força a partir dos anos 2000, com o crescimento da diversidade de vozes e o aumento da circulação desses livros. 

Esse avanço, no entanto, ainda convive com reações conservadoras e tentativas de silenciamento. Mesmo após décadas do fim da ditadura militar, episódios de censura continuam a ocorrer, como em 2019, quando o então prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, tentou recolher um livro em quadrinhos que apresentava um casal homossexual como protagonista, na Bienal do Livro. Em resposta, há uma resistência crescente de editoras independentes, muitas delas fundadas por pessoas LGBTQIAPN+ que, diante do mercado tradicional, criam seus próprios espaços de visibilidade.

Mais do que um espaço de criação artística, a literatura LGBTQIAPN+ é uma forma de resistência. Ao narrar vivências diversas, afetos e conflitos, essas obras fortalecem identidades, questionam silenciamentos e ajudam a construir outras possibilidades de existência. Em um país onde a população LGBTQIAPN+ ainda enfrenta violência e apagamentos, contar essas histórias e garantir sua circulação, é também uma forma de reivindicar presença.

Para explorar mais a literatura LGBTQIAPN+, Natalia Borges Polesso e outros leitores oferecem recomendações:

Ficção (romance, conto, poesia, quadrinhos, etc.)

Nacionais 

  • A palavra que resta, de Stenio Gardel
  • Amora, de Natalia Borges Polesso
  • Quinze dias, de Vitor Martins
  • Todos nós adorávamos caubóis, de Carol Bensimon
  • Morangos mofados, de Caio Fernando Abreu
  • O amor dos homens avulsos, de Victor Heringer
  • Um útero é do tamanho de um punho, de Angélica Freitas
  • Enquanto os dentes, de Carlos Eduardo Pereira
  • As coisas, de Tobias Carvalho
  • Contos transantropológicos, de Atena Beauvoir
  • Vou sumir quando a vela se apagar, de Diogo Bercito
  • Mil rosas roubadas, de Silvano Santiago
  • Outono de carne estranha, de Airton Souza
  • Quarto Aberto, de Tobias Carvalho
  • Neca: romance em bajubá, de Amara Moira
  • O Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha

Internacionais 

  • Orlando, de Virginia Woolf
  • Carol, de Patricia Highsmith
  • De Profundis, de Oscar Wilde
  • Mudar: método, de Édouard Louis
  • Mau Hábito, de Alana S. Portero
  • Fun Home, de Alison Bechdel
  • O quarto de Giovanni, de James Baldwin
  • Nadando no escuro, de Tomasz Jedrowski
  • Mentiras que contamos, de Phillippe Besson
  • Poco Hombre, de Pedro Lemebel
  • Tese sobre uma domesticação, de Camila Sosa Villada
  • O parque das irmãs magníficas, de Camila Sosa Villada

Não ficção (memórias, teoria, ensaio, história, etc.)

Nacionais 

  • Antologia da poesia gay, de Angélica Freitas

Internacionais 

  • Problemas de Gênero, de Judith Butler
  • Pensamento Hetero, de Monique Wittig
  • A arte queer do fracasso, de Jack Halberstam
  • Vidas rebeldes, belos experimentos: histórias íntimas de meninas negras desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers raciais, de Saidiya Hartman
  • A história da sexualidade, de Michel Foucault
  • Heterossexualidade compulsória & outros ensaios, de Adrienne Rich
  • Homo Inc. Corporated, de Sam Bourcier
  • A vulva é uma ferida aberta & outros ensaios, de Gloria Anzaldúa
  • Um apartamento em Urano, de Paul B. Preciado
  • Retorno a Reims, de Didier Eribon
  • Além do Carnaval, de James Green

As literaturas LGBTQIAPN+ são um reflexo das múltiplas vozes da sociedade brasileira: diversas, necessárias e em constante expansão.