Finada Infância

A luta para permanecer criança em meio à violência

Andrei dos Santos Rossetto

Por Lorenzo Manzoni

Mais que uma instituição de ensino, a creche atua como um lugar de acolhimento para crianças vulneráveis / Foto: Lorenzo Manzoni

Quem passa pelos grandes muros e grades do Condomínio Princesa Isabel, na região central de Porto Alegre, nem imagina o que acontece dentro dos portões onde mais de mil pessoas vivem, em cerca de 200 apartamentos. Apelidado pela mídia portoalegrense, o lugar ficou estigmatizado na comunidade local como “Carandiru”. Com frequentes aparições nas páginas policiais dos jornais da cidade, se instalou no imaginário popular a ideia de que é um condomínio de bandidos, “uma fortaleza para o tráfico” , como disse uma manchete da Zero Hora de 10 anos atrás. Mas será que se pode resumir uma comunidade inteira a isso?

Quase no fim da quadra que liga as avenidas João Pessoa e Bento Gonçalves, existe uma placa, praticamente escondida entre os apartamentos do enorme complexo habitacional que toma o trecho esquerdo da avenida Princesa Isabel. Com as letras desbotadas, quase apagadas, e três marcas de tiro, a placa assinada pela Prefeitura de Porto Alegre diz: Instituição de Educação Infantil Princesa Isabel. 

Localizada há 19 anos dentro do complexo de moradias populares, a creche atende 79 alunos de 1 a 6 anos em situação de vulnerabilidade. Entre moradores do condomínio e das proximidades, crianças de abrigos também estão matriculadas na escola que funciona em turno integral, das 7h30 às 17h30. Além de uma instituição de ensino, o local opera como um espaço de acolhimento, uma fuga do ambiente vulnerável e violento que cerca as crianças. 

“Às vezes o planejamento não é o principal. O principal é um colo. É um carinho, é uma conversa. Talvez seja isso que a criança esteja precisando e a gente muitas vezes não consegue ver”, afirmou Renata, atual coordenadora da creche.

Placa da escola localizada na avenida Princesa Isabel / Foto: Lorenzo Manzoni

‘A gente tá num campo de guerra e ninguém tá se dando conta’

Os moradores do Condomínio Princesa Isabel vivem constantemente no meio do cabo de guerra entre o crime organizado e as forças policiais. Com o tráfico de drogas acontecendo a céu aberto e recorrentes operações da polícia, a tensão dita o clima do dia a dia. O local ganhou espaço nas notícias em maio do ano passado, mais uma vez nas páginas policiais. A morte de Vladimir Abreu, assassinado por agentes da Polícia Militar durante as enchentes que afetaram o estado, tomou grande repercussão com o desenrolar das investigações que levaram à prisão de cinco oficiais. Por pelo menos um mês, os moradores do condomínio viveram sob o cerco da Brigada Militar, que monitorava todos os três portões do complexo, revistando cada um que entrava, inclusive a mochila de crianças que chegavam para a creche.

“As crianças entram aqui dentro e dizem: ‘a polícia tá alí prof’. Eles têm medo, a polícia não é o heroi, pelo menos aqui na nossa situação”, contou na época Themis Caneda, ex-coordenadora da escola.

É nesse contexto que a creche tenta não só educar, mas cuidar, proteger e criar um ambiente seguro, alheio desse cenário de violência. “A gente tenta aqui dentro, nesse mundinho fechado de escola, manter a garantia de sono, alimentação, brincadeiras, tranquilidade, de um momento em um espaço de criança”, contou Themis.

‘Hoje eu vou ficar com a bolsinha’

Segundo a mestre em Psicologia e especialista em Avaliação Neuropsicológica Giordana Machado crianças de até 6 anos ainda misturam realidade com fantasia e vivem uma fase extremamente criativa. É um período importante do processo de socialização em que o maior foco é brincar. Entretanto, do pátio da Escola Princesa Isabel para dentro, algumas brincadeiras comuns entre as crianças são estritamente proibidas pelas professoras.

“Eles montam armas com os blocos. Brincam que alguns são a polícia e outros são os traficantes. ‘Hoje eu vou ficar com a bolsinha!’ — dizem as crianças — A bolsinha é onde os meninos guardam as drogas para vender”, relatou Themis. 

De maneira inocente, as brincadeiras, ricas em detalhes sobre o funcionamento do tráfico de drogas e a relação com a polícia, são um reflexo do que as crianças observam acontecer no cotidiano. Essa proximidade com a vida no crime e a exposição à violência transparecem também no desejo dos alunos, que verbalizam para as professoras a vontade de ser policial, pois “demonstram força, chegam batendo e estão armados”. Na percepção da ex-coordenadora, a vontade não surge do desejo de proteger, mas de ter poder. “Aqui dentro o que conta é o empoderamento, tanto do tráfico quanto da polícia.”

Para Giordana, que também é ex-presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Criciúma, essa é apenas uma das diversas formas que as crianças têm de transparecer o contexto em que vivem. Segundo a neuropsicóloga, quando expostas a um ambiente hostil, crianças nessa faixa-etária tendem a reagir com medo, insegurança, pouca sociabilidade ou até mesmo apresentar uma socialização violenta. “As crianças tendem a se tornarem violentas porque, nesse ambiente, elas aprendem dessa forma, vendo e vivenciando que a força e o poder sobre o outro é a melhor forma de se impor ali”.

Mesmo os mais pequenos já sentem os sintomas da violência / Foto: Lorenzo Manzoni

‘Eu não consigo respirar’

Além da reprodução da violência, as crianças colhem outros frutos dessa opressão: as marcas emocionais. De acordo com as educadoras, muitas crianças se demonstram ansiosas, com dificuldades de concentração ou para dormir. “Quando descansam, a gente tem crianças que acordam em sobressaltos, com falta de ar”, relatou Themis. 

Para a ex-coordenadora, a situação que mais mexeu com ela foi a de uma aluna que tinha parentesco com Vladimir, morto pela Brigada Militar. Segundo Themis, dias depois do assassinato a menina acordou do descanso com claros sinais de pânico. “Ela acordou assustada, falando ‘eu não consigo respirar, eu tô com medo de morrer’. Ela só tem cinco anos”.

Segundo a neuropsicóloga Giordana Machado, essa não é uma situação normal, até mesmo em crianças que demonstram alguns sinais de nervosismo e apreensão, mas que evidencia um caso severo, para a idade, de depressão e ansiedade.

A forma como cada indivíduo reage a esse ambiente hostil varia de criança para criança, entretanto, a tendência de alguns padrões de comportamento são facilmente perceptíveis quando há um recorte de gênero. “Enquanto os meninos são mais suscetíveis a se tornarem violentos, externalizando essa agressividade, as meninas são mais suscetíveis a internalizar essa violência,” Giordana também afirma que essa internalização pode ser ainda mais prejudicial após o crescimento, tornando o indivíduo mais exposto a atentar contra a própria vida.

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Alunos de turmas variadas compartilham os brinquedos no intervalo / Foto: Lorenzo Manzoni

Segundo a ex-coordenadora da escola, no período de maior tensão no condomínio, alguns pais pensaram em cancelar a matrícula dos filhos e até mesmo em se mudar do complexo habitacional por conta da falta de segurança. Ela relata que, em uma conversa com o pai de um aluno, ele afirmou que durante uma incursão realizada pela polícia, o filho, de 5 anos, pegou um martelo e se pôs frente a porta de casa em um impulso de defesa. “Eu não quero isso para o meu filho, não quero que ele tenha que se defender dessa forma”, disse Themis, parafraseando o responsável pelo aluno.

Essa externalização condiz com os sentimentos de raiva, medo e estresse no qual as crianças são expostas. Na análise de Giordana sobre o acontecimento, crianças dessa faixa-etária não tem noção do perigo que esse tipo de situação representa e, sem ter total controle sobre as emoções, acabam agindo por impulso, como um mecanismo de defesa, de luta pela sobrevivência.

“É muito intenso aqui. No pouco tempo que eu estou aqui, vi coisas que nunca tinha visto em outras escolas. É diferente”, afirmou Renata, coordenadora da creche há três meses.

Porém, os traumas da violência não são uma exclusividade das crianças que vivem a rotina do Condomínio Princesa Isabel. Em uma das minhas visitas à creche, resolvi participar da rotina dos alunos, observando de perto uma turma de Jardim — com alunos de 4 a 5 anos — em sala de aula. Entre brincadeiras, brigas e choro se destacou aos meus olhos uma menina. Quieta. Enquanto todos brincavam, cada um de sua maneira, ela permaneceu sentada, apenas observando os colegas, durante todo o período que estive ali. 

Na “hora do soninho”, o descanso das crianças após o almoço, passei a conversar com a coordenadora da escola sobre o que observei em sala de aula na manhã daquele dia. Segundo Renata, a menina mais quieta chegou à creche por intermédio de uma conselheira tutelar, que foi acionada através de uma denúncia — feita por um terceiro — de violência doméstica. Em uma das brigas e agressões entre o pai e a mãe, uma caneca arremessada atingiu a menina por engano, cortando e deixando uma cicatriz no ombro. Retraída, com quem a menina mais interage é a professora, porém, impõe seus limites nessa relação. Renata me contou que, independente do calor, a menina nunca aceita tirar o casaco, seja para dormir ou para brincar no pátio da escola. “Eu acredito que ela não queira mostrar ou enxergar o que de alguma forma ficou”, disse Renata. Um vestígio da violência que não se limita ao emocional. Uma marca eterna no corpo, que não deixa que a menina se esqueça.

‘A vida é aqui dentro’

Expostas e vulneráveis, as crianças antecipam o processo de amadurecimento. Responsáveis pela própria defesa, num ambiente que hierarquiza os indivíduos pela força, elas passam a pular etapas importantes da infância, acumulando mais responsabilidades, como um autocuidado que não é cobrado de crianças que não vivem essa realidade hostil. “Esse pular etapas, inconscientemente, faz com que a criança queira liberdade mais cedo”, ressalta Giordana.

Dos portões do condomínio para dentro, o conceito de liberdade se torna algo relativo na vivência dos pequenos. Segundo Themis, “Para eles, a vida é aqui dentro, não é fora dos portões”. Cercados por muros e altas grades, as crianças se sentem seguras para circular pelo pátio do complexo sem supervisão, algumas até às primeiras horas da madrugada. 

A vista do pátio da creche pela janela da secretaria / Foto: Lorenzo Manzoni

“Ela entende que ‘se eu tenho o ônus da coisa’, que é estar vivendo nesse ambiente onde tenho que me defender, também quero a liberdade de fazer o que eu quiser”, explicou Giordana.

Vivendo de maneira mais livre e independente, as crianças cada vez mais se expõem a riscos. Isso, somado a uma recorrente necessidade de emoção e demonstração de força, ressoa nas primeiras fases da adolescência como um “vício em adrenalina” na visão da neuropsicóloga. “Se demonstra até nas brincadeiras, por exemplo, desafiar o amigo a atravessar uma avenida correndo. Essa hierarquia que se cria de quem é mais corajoso coloca eles em risco por esse desejo de emoção.”

É nesse início da adolescência, dos 10 aos 12 anos, que os jovens ficam mais suscetíveis ao contato direto com o tráfico e com as drogas, seja experimentando alguma substância ou participando do processo de comercialização ilegal. “Eles vão desde muito cedo ganhando presentes, bola, roupa de marca dos traficantes. Então ali vêem um um futuro”, destacou Giordana.

Segundo a psicóloga, essa afetividade facilita o aliciamento de jovens, tanto para atuar ao lado do crime organizado, quanto para se tornar um possível cliente. Ela ainda alerta que o tráfico também costuma aliciar meninas, mas de uma maneira diferente. “A partir dos 11 ou 12 anos, vão também sendo trazidas pelo tráfico, mas com um olhar sexual.”

‘Lá no Carandiru? Não quero meu filho lá’

Cercada não só pelos muros do condomínio, mas também pelas barreiras criadas junto do estigma “Carandiru”, a creche enfrenta um grande problema: a permanência de funcionários e alunos. Segundo a vice-presidente da Associação dos Moradores, Maria Lúcia Sant’Anna, o processo de contratação de novos profissionais para escola tem se tornado cada dia mais desafiador. “Quando as pessoas veem no anúncio que é aqui dentro, as pessoas não querem”, afirmou Lúcia. 

Ela relata que, em alguns casos, até conseguem realizar entrevistas com candidatos, mas estes raramente retornam para assumir a função após o processo seletivo. Dos que retornam e começam a experiência na escola, poucos passam do contrato inicial de um mês, alguns sequer chegam a completá-lo. O mesmo acontece com os alunos. A escola nunca chegou a ocupar todas as vagas e tem alto índice de desistência. 

“São 84 vagas que nós temos aqui. Hoje temos 79 matriculadas. Nunca aconteceu isso, era 48, 50. É um trabalho que a gente teve pra colocar a escola de uma maneira que as pessoas cheguem aqui e vejam que é uma escola boa. A pessoa vem fazer matrícula e começa a trazer o filho, aí vê que a criança está bem assistida, permanece. Outros, quando a SMED (Secretaria Municipal de Educação) dá vaga, nem querem. ‘Lá no Carandiru, não quero meu filho lá’”, relatou Lúcia.

Alunos do Jardim A se organizando em fila indiana para ir ao refeitório / Foto: Lorenzo Manzoni

Para Andressa Braga, professora na escola infantil há 3 anos e moradora do condomínio há 20, o problema vai além do preconceito com o local. Atualmente, a creche não possui nenhum acesso independente ao complexo habitacional e o trajeto percorrido dentro do condomínio para chegar na escola pode assustar quem não está acostumado com a rotina do lugar.  “Às vezes eu trago a minha filha e eles estão ali com arma, brincando, mostrando. Ou às vezes eu passo ali e eles estão com os pinos, os pinos no chão assim. É bem ruim mesmo ter que passar no meio”, disse a professora a respeito da atuação dos traficantes.

Há pelo menos dois anos, a escola luta com a SMED para a construção de um portão que dê acesso direto à creche, pela avenida Princesa Isabel. Na visão da vice-presidente da associação, um portão preservaria crianças e funcionários que vêm de fora do condomínio de ter qualquer contato com a rotina do crime organizado. Além da segurança, na visão dos gestores da creche, a independência da escola infantil poderia deixar o ambiente mais atrativo e acolhedor. A porta de entrada para um ambiente onde criança pode, finalmente, ser criança.