Há gerações, Bará do Mercado abre os caminhos da religiosidade afro

O mosaico, no centro do Mercado Público de Porto Alegre, reuniu fiéis durante o Batuque da Reconstrução após a enchente de 2024

Jornalismo Especializado

Fiéis durante o Batuque da Reconstrução, em setembro de 2024, no mosaico do Bará do Mercado Público de Porto Alegre | Foto: Ane Gabriele Aquino Ramos, LabJ

Por Ane Gabriele Aquino Ramos

“Um axé por um axé” entoa a simpática senhora de pele negra retinta que, em contraste com as roupas brancas e adornos coloridos que carrega, deixa mais charmosa a entrada principal do Mercado Público de Porto Alegre. Mais adiante, no chão do interior do imponente prédio histórico, um mosaico de pedras brancas e vermelhas com sete chaves douradas chama atenção de quem passa por ali. A mulher é Silvia de Iemanjá, praticante da nação Oyó do Batuque do Rio Grande do Sul.

O mosaico simboliza o assentamento do Bará do Mercado, patrimônio cultural de Porto Alegre, cultuado há várias gerações. As origens do Bará, porém, guardam certo mistério. Tanto Silvia como o Bará representam o movimento de resistência e disseminação da cultura dos povos de religiões de matriz africana. marcam, no imponente prédio amarelo do Centro Histórico da capital gaúcha,

Segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Rio Grande do Sul é o estado brasileiro que tem mais adeptos de religiões de matriz africana. A religião Batuque do Rio Grande do Sul (RS) é uma cultura herdada do povo iorubá, chegado aqui no período escravocrata em meados do século XVIII. De acordo com o historiador Hendrix Silveira, o Batuque do RS não se limita em ser uma religião, mas é uma tradição. “O Batuque é um pensamento civilizacional, cultuado diariamente em todos os lugares. Pedimos licença para entrar no mar de Iemanjá, para voar num avião atravessando os ventos de Oyá e para caminhar nas estradas de Bará, pois, para nós, o local sagrado é todo aquele em que a natureza está presente. As casas religiosas não são apenas templos, são museus que contam a história de resistência daquele povo”, afirma o professor Silveira. Ele é mestre e doutor em Teologia pelas Faculdades EST.

Sendo próximo de religiões como o Candomblé, o Tambor de Mina e a Santeria cubana, o Batuque se distingue nos atos litúrgicos. Nele, são cultuados doze deuses iorubás, chamados orixás, que possuem características que os diferenciam e se manifestam através de elementos da natureza. Além disso, o Batuque se subdivide nas chamadas nações. Sendo Jejé, Ijexá, Cabinda, Oyó e Nagô as mais conhecidas. Para cultuar os orixás, são feitos diferentes tipos de ritos. Alguns são cotidianos, como oferendas que levam alimentos e cores específicas para cada um; outros são de maior proporção e de cunho mais festivo, como as festas de batuque onde são tocados tambores, vestidas roupas típicas, servidas comidas tradicionais, entoados cânticos em iorubá e danças com gestual diferente para cada um dos doze deuses do panteão africano.

No chão da encruzilhada central em que culminam as quatro entradas do Mercado Público de Porto Alegre, está o exuberante mosaico redondo de pedras que simboliza o assentamento do Bará do Mercado. O “assentamento” é parte importante dos cultos no Batuque e é feito com algum elemento natural. Este elemento geralmente é uma pedra com formato diferente para cada orixá, sendo consagrado por meio de ritualística para materializar simbolicamente a divindade a ser cultuada. O orixá Bará é conhecido entre os fiéis como o detentor das chaves que abrem oportunidades e todos os caminhos, das encruzilhadas e do movimento. Ele é o primeiro a ser invocado nas celebrações, abrindo passagem para as demais divindades. O orixá Bará é celebrado com oferendas que levam alimentos como milho torrado, azeite de dendê, batatas, balas de mel e moedas, cânticos em língua iorubá chamados “rezas” e possui como cor típica o vermelho. Pelo sincretismo religioso, no catolicismo é representado por São Pedro ou Santo Antônio.

Conforme Silveira, na cultura africana os mercados são grandes centros de atividade e todos eles são protegidos espiritualmente pela divindade Exu Olojá, o “Senhor do Mercado”. Em Porto Alegre, desde sua construção iniciada em 1864 e concluída em 1869, o Mercado é um local importante para a população. A construção já foi um espaço onde os escravizados eram postos à venda. O Mercado sempre influenciou diretamente na economia local, sendo um ponto de encontro popular que explora a gastronomia, promove eventos culturais e é, de forma indiscutível, um marco de resistência dos povos de religiões de matriz africana.

Relatos históricos, levantados por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, apontam que os trabalhadores que atuaram na construção do Mercado Público já saudavam ali o orixá Bará e teriam feito seu assentamento ainda naquela época. Porém, outra narrativa aponta que o ato litúrgico teria sido feito por Custódio, o príncipe porto-alegrense. Vindo do Benim, ele viveu em cidades como Rio Grande e Pelotas antes de se estabelecer em Porto Alegre, em 1901. Na capital gaúcha, ganhou notoriedade através do turfe e tinha convivência com figuras célebres como Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros, para quem prestava consultoria religiosa. Nessa versão, acredita-se que Custódio teria feito o assentamento do Bará não somente no Mercado Público, como também no Palácio Piratini e na Igreja Nossa Senhora das Dores, como forma de proteção e geração de energia de prosperidade aos locais.

Na década de 1990, foram feitas escavações no Mercado Público em busca de algo que sinalizasse o assentamento de Bará, entretanto nada foi encontrado. Todavia, o local é tradicionalmente visto como ponto de grande energia e para manifestação de fé pelos seguidores das religiões afro. Em fevereiro de 2013, foi instalado o mosaico dos artistas Leandro Machado, Pelópidas Tebano e Vinícius Vieira. O mosaico foi inaugurado no centro do Mercado Público, um marco físico para os fiéis fazerem seus pedidos e demais atos religiosos.

Na atualidade, o local expressa o movimento de resistência e exaltação da cultura negra com eventos e manifestações culturais que disseminam a religiosidade afro. Um exemplo foi o Batuque da Reconstrução, já que, em maio de 2024, o Mercado Público foi inundado durante a enchente que atingiu Porto Alegre. O evento, em 30 de setembro de 2024, reuniu afro religiosos de diferentes regiões do estado para reforçar simbolicamente a energia do Bará no Mercado.

Usando roupas em que predominava a cor branca, adornos como colares e turbantes, fiéis dançaram alegremente ao redor do mosaico, entoando rezas em iorubá ao som ritmado de cinco tambores e vários “argês”, que são instrumentos parecidos com chocalhos feitos com porongos e miçangas.