Os sonhos palestinos de Firas Shehade

Fundação Vera Chaves Barcellos têm exposição de único artista palestino da 14ª edição da Bienal

Fran Geyer

Imagem do filme Like an Event in a Dream Dreamt by Another—Insomnia / Reprodução: Firas Shehade

Originário da cidade de Ramle, mas nascido em um campo de refugiados na Jordânia, a arte de Firas Shedade retrata as contradições de ser palestino. Viver sob o contínuo conflito com Israel pelo simples e antigo direito de existir. A arte palestina faz parte de um esforço interminável pela memória coletiva de uma nação constantemente atacada. 

A arte é naturalmente um esforço político, mas no contexto palestino ela ocupa um espaço de memória, de lembrança de um povo que não permitirá ser silenciado. “É sobre registro, basicamente sobre exclamar eu estou aqui, eu existo e eu não vou desaparecer”, afirma Shedade. 

Os sonhos palestinos são algo completamente diferente, são a imaginação trazida à vida. Uma recriação deliberada de um futuro ainda por vir, eles sonham com o retorno. Esses sonhos ocorrem o dia todo, e dormir não faz parte dessa equação

Firas Shedade no filme Like an Event in a Dream Dreamt by Another—Insomnia (Como um Sonho Sonhado por Outro – Insônia). 

A guerra também é um tema importante da arte criada por Shehade, que utiliza de criações ocidentais, como o videogame Grand Theft Auto V, para criar ensaios e vídeos que relembram a realidade palestina. O jogo, lançado em 2015 pela Rockstar Games, retrata a cidade de Los Santos, uma sátira ultracapitalista e ultramilitarizada da cidade de Los Angeles, na Califórnia. 

Tu poderias descrever o teu processo? Quais as influências que fazem parte do teu trabalho como artista?

Meu trabalho é baseado basicamente na Nakba (catástrofe) e na realidade palestina. Seja ela histórica ou atual, como o genocídio em Gaza. Ele está muito conectado com a história do meu povo e com a minha própria história também. Este filme que fiz para a Bienal (Like an Event in a Dream Dreamt by Another—Insomnia) é basicamente o segundo capítulo de outro filme que produzi há dois anos para o Museu de Arte de Singapura. Chamava-se “Rehearsal” e este é o segundo capítulo. Eu trabalho muito com sonhos, como diz o título, mas no sentido de quais são os sonhos no contexto colonial, quais são os sonhos do povo colonizado e quais são os sonhos do colonizador. Foco especificamente na Palestina e aplico basicamente videogames a esse mundo de sonhos. Trabalho principalmente com GTA V neste filme por vários motivos, mas principalmente pelas semelhanças com o mundo em que o jogo se passa. Los Santos, a principal cidade de GTA 5, é basicamente hipercapitalista, hiperamericana. 

Tu vê semelhanças no modo como o GTA retrata uma sociedade, especialmente uma hiperviolenta como Los Santos, onde a todo o  momento se escuta uma explosão, um conflito, uma explosão, com a realidade palestina? Como a de um povo que vive constantemente sob um olhar colonizador e que constantemente recebe agressões?

Os Estados Unidos e Israel têm muito em comum: um é como um estado colonial extra-militarizado e o outro como uma nação também extra-militarizada. Então, é muito por isso que eu fui atraído no meu trabalho, quero dizer, eu amo Grand Theft Auto, como uma série, eu jogo desde a minha infância. Desde GTA 1, mas especialmente como GTA 5, estava ressoando muito com o meu trabalho e, sim, basicamente pensando na Palestina como Los Santos e vice-versa. Basicamente, aplicando todos esses tipos de contradições entre o mundo real e o videogame, o que significa construção de mundo e videogames. O primeiro capítulo do ensaio foi principalmente sobre como os jogadores palestinos ensaiam a vida no videogame, mas também uma introdução aos jogos de RPG em geral para jogadores palestinos. O jogo é mais ou menos uma metáfora para a vida real, então não é realmente sobre o jogo em si, mas na verdade sobre o que o jogo pode representar na realidade.

Várias organizações, como o exemplo da Arquitetura Forense, trabalham para restaurar, mesmo que digitalmente, uma memória da Palestina pré-Nakba. Pensando justamente na questão de uma memória coletiva, da lembrança, como tu sentes que o teu trabalho entra nessa noção coletiva de Palestina? 

Essa produção é, basicamente, um ato de sobrevivência, de resistência ao apagamento. Como todas as outras lutas e resistências palestinas desde a Nakba. É basicamente resistência ao apagamento colonial, seja na forma de luta armada ou em videogames, na modelagem, na literatura, na poesia ou até mesmo nas canções de vovó. Quer dizer, história oral, literatura, cinema, tudo isso é basicamente sobre registro. Registrar é basicamente dizer: “eu estou aqui, eu existo e não vou desaparecer”. É esse ato de resistência ao apagamento colonial, que significa essencialmente o extermínio e eliminação de um povo, algo que não é exclusivo da Palestina. Obviamente, vemos a mesma história em todo o mundo colonizado, a única diferença é que a Palestina atual é o último projeto colonial de colonização que não alcançou a sua solução final. Há essa constante ansiedade dos colonos, porque eles sabem que fizeram esse mal e seus ancestrais fizeram esse mal, e que haverá um acerto de contas algum dia. Um criminoso sempre saberá que é um criminoso. É basicamente a mesma história em todo o mundo colonial. E sim, o meu trabalho também é como parte dessa “missão coletiva de sobrevivência” para resistir ao apagamento. Eu faço filmes por causa disso. Porque quero resistir ao apagamento, e reafirmar meu direito de retorno e o termo legítimo para o meu povo em nossas vilas e cidades.

Como tu vê essa modificação e essa reapropriação no teu trabalho?

Para mim, usar essas imagens pré-existentes e me apropriar delas. Reaproveitando-as, subvertendo essas imagens e materiais para criar outro tipo de narrativa em cima da narrativa original. Algo estético e que também reflete a realidade palestina de uma forma ou de outra. Alguém está tentando apagar você e tentando criar outra narrativa em cima de você, mas o que você faz é pegar essa narrativa, sequestrá-la e virá-la de cabeça para baixo novamente. Você não tem todas as ferramentas, obviamente. Muitos consideram o ato de modificar como basicamente uma reapropriação desses ambientes ou mídias para contar outra história.

Especificamente sobre a Bienal, tu esteve aqui em Porto Alegre, brevemente, certo? Como foi a visita?

Sim, foi incrível! Foi muito importante no nível pessoal. Eu moro na Europa e, para ser sincero, não é o lugar mais seguro para um palestino, ou árabe, ou qualquer imigrante. Sem falar no sol, você precisa de sol de vez em quando. Ainda mais eu, que venho de uma região que é basicamente sol e água, com pessoas calorosas, comida quente e pessoas que passam horas e horas conversando sobre coisas aleatórias. Então, foi muito bom, em termos de saúde, mas também o que é muito importante para mim é conhecer e me conectar com as cenas locais, seja de Porto Alegre, do Brasil ou da América do Sul em geral, mas também com os outros convidados de fora. Então, foi sobre essa troca, esse aprendizado. A América Latina influencia muito na minha prática artística. Gosto muito do que está acontecendo nesta região, esse tipo de política e poesia punk, mas essa maneira muito forte de trabalhar. Eu tive uma experiência, alguns anos atrás em Barcelona, ​​onde eu estava morando em uma comunidade de artistas do Chile, da Bolívia, do Peru, do México, etc., e foi muito interessante ver, na prática, a cena artística que existe na América do Sul. Eu realmente gosto desse tipo de espírito punk. 

Acho que eu fiquei em Porto Alegre por oito ou sete dias. Não tenho certeza porque parei de contar. No momento em que eu cheguei em Porto Alegre foi como um dia, com cochilos no meio.

Para escrever um poema
que não seja político
devo escutar os pássaros
Mas para escutar os pássaros
é preciso que cesse o bombardeio

Poesia e Politica, Marwan Makhoul, Poeta palestino