Polícia Militar atendeu 43 ocorrências de surtos psicóticos ou esquizofrênicos em 2024 no Brasil; 20 pessoas morreram 

Alto número de vítimas baleadas ou mortas por armas de fogo de policiais mostra possível despreparo no trato de casos envolvendo crises de saúde mental ou problemas no protocolo de treinamento.

Lucas Polidori Azeredo

(Reprodução: Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Por Lucas Azeredo


Além dos 183 casos de violência policial apurados com exclusividade pela equipe do Lab J na reportagem “‘Casos Isolados’: Policiais Militares cometem ao menos um ato de violência desnecessária a cada 2 dias em 2024”, outras ocorrências também deixaram corpos para trás: o atendimento de surtos esquizofrênicos ou psicóticos. No ano passado, a Polícia Militar matou 20 pessoas em surto em todo país. Todas as vítimas fatais foram baleadas, incluindo um homem idoso e um deficiente físico. O levantamento foi produzido a partir de manchetes e notícias publicadas em portais e veículos de comunicação. (Confira aqui os registros coletados pelo Lab J) 

“A esquizofrenia, como atualmente a entendemos, é uma doença mental com caráter crônico e que leva a uma degeneração mental dos indivíduos doentes, podendo levar a graves prejuízos para seu funcionamento individual, familiar, profissional e social”, define o médico psiquiatra do Instituto Psiquiátrico Forense (IPF) Ruben de Souza Menezes. Ruben também explica que o paciente portador da doença está “sujeito a rupturas com a realidade, com manifestações tanto intrapsíquicas, com a presença de sintomas como delírios e alucinações, como interpessoais, com a ocorrência de condutas inadequadas ou mesmo violentas”. A esquizofrenia afeta uma a cada 100 pessoas, geralmente se manifestando pela primeira vez na adolescência ou no início da fase adulta.

Como a doença altera a percepção de realidade e a capacidade de interação do indivíduo, o manejo correto de uma emergência é essencial para evitar maiores danos.  “Em linhas gerais, porém, se pode dizer que o manejo correto de uma crise começa antes da crise.  Especialmente pelo trabalho prévio de identificação e conscientização dos sintomas”, explica o médico. Ele reforça que “não há manejo único válido para todos os pacientes”.

(Divulgação/Brigada Militar RS)

Casos como os relatados no levantamento são assuntos evitados dentro dos quartéis da Brigada e da Polícia Militar. As pessoas atendidas têm, na sua grande maioria, comportamento agressivo e, alguns, estão até armados. Das 43 ocorrências registradas, metade (22 casos) continha um fator de risco para os policiais como uma faca, uma arma de fogo ou até uma marreta. Ruben reforça que os indivíduos em surto não respondem por suas próprias ações e de que a agressividade é uma resposta para ameaças irreais, uma vez que a pessoa em crise “perde o sentido de realidade, ficando incapaz de distinguir a experiência real da imaginária”. 

“É comum que os doentes ignorem totalmente o fato de estarem sob manejo de policiais e do risco objetivo que isso implica. Casos como o de um doente que invadiu uma delegacia e começou a bater no delegado com seu capacete exigindo a retirada do chip (imaginário) de sua cabeça existem. O delegado era alguém muitíssimo esclarecido e manejou muito bem o doente sem feri-lo. No entanto, também existem  casos como o do doente que foi colocado dentro de um  camburão e os policiais rodoviários federais deram-lhe gás lacrimogênio até sua morte”, comenta Menezes. 25 pessoas foram feridas, fatalmente ou não, em atendimentos da Polícia ou Brigada Militar de pessoas em crise. 

Uma estatística apresentada na reportagem dos “Casos Isolados” que chama a atenção é o percentual de homens. Das 43 ocorrências atendidas em 2024, 39, praticamente 90%, envolviam um homem em estado de surto. O médico psiquiatra diz que isso se dá ao natural: “Os homens apresentam comportamentos violentos e criminosos em  uma taxa muito maior do que as mulheres, sejam  doentes mentais ou não. Além disso,  os homens também são percebidos,  seja pela população geral, seja pela própria polícia, como potencialmente muito mais perigosos do que as mulheres”. No IPF, onde Ruben trabalha, dos 618 pacientes, 552 são homens, com 66 mulheres. 

Em contato com a reportagem, a Brigada Militar do Rio Grande do Sul informou não ter um treinamento específico para esse tipo de abordagem e de vítima, e que usam como referência de os ensinamentos dos cursos de Gestão de Crise e Negociação e Resgate de Reféns. Para Ruben, “logicamente que deveria haver treinamento específico para os agentes públicos da área da segurança para saberem diferenciar um doente mental de um criminoso não doente mental. Este treinamento deveria ser geral e estendido a todos os policiais de linha de frente”. 

Questionada sobre a alta letalidade das ocorrências e sobre o procedimento envolvido nesses casos, a Brigada Militar optou por não responder. “Conhecimento e treinamento seriam os melhores remédios para as polícias lidarem com indivíduos com alterações de comportamento por doença mental. Estudos de interações de policiais e doentes feitos em  outros países mostram que tanto os profissionais podem atuar de modo benéfico como também podem prejudicar muito os doentes, seja prendendo excessivamente, seja agredindo-os, pura e simplesmente”, conclui Ruben Menezes.

Esta reportagem faz parte do projeto especial do Lab J “50 anos de ROTA 66”: A Polícia que mata (e fala), que contém duas reportagens e um podcast especial sobre os 50 anos do caso ROTA 66.