Porto Alegre perde espaço para o abandono imobiliário

Comissão é criada para gerenciar imóveis abandonados, mas burocracia e vácuo legal impedem prefeitura de agir

Investigação e Transparência

Por Luigi Gazzola

Porto Alegre possui 27 imóveis abandonados e em condições legais para iniciar o processo administrativo de arrecadação. Foto: Luigi Gazolla/LabJ

A Procuradoria-Geral do Município (PGM) informou que 27 imóveis de Porto Alegre estão abandonados e em condições legais para iniciar o processo administrativo de arrecadação. Os imóveis estão distribuídos em diversas regiões da Capital, sendo as principais: Centro Histórico (5 imóveis), Cristal (3 imóveis), Rubem Berta (3 imóveis), Navegantes (3 imóveis), Ipanema (2 imóveis), Partenon (2 imóveis), Cavalhada (2 imóveis) e Cidade Baixa (2 imóveis).

Em pedido via Lei de Acesso à Informação (LAI), protocolado no Sistema Eletrônico do Serviço de Informação ao Cidadão (e-SIC) da Prefeitura, a reportagem solicitou quantos imóveis foram arrecadados e qual foi a destinação dada a eles. A resposta da PGM foi categórica: “nenhum imóvel efetivamente arrecadado, considerando que não houve arrecadação de imóveis no período analisado, não há destinação a ser informada”.

Quando questionado sobre a ausência de arrecadações, o Procurador-Geral do Município e presidente da Comissão de Análise e Gerenciamento de Imóveis Abandonados (Cagim), Gustavo Pestana, esclareceu: “A gente tem dificuldade em localizar proprietários ou herdeiros, e, depois, a própria situação registral do imóvel é muito complexa. O processo de arrecadação é demorado, envolve uma tramitação judicial bastante robusta. Temos que fazer notificações, publicar editais e dar oportunidades a terceiros interessados para que eles também se manifestem. Então, leva alguns anos até que a gente consiga a primeira decisão. Esperamos, agora em 2025, ter a primeira sentença.”

O objetivo principal da Cagim é garantir a aplicação correta da legislação, apurar os requisitos legais para a configuração do abandono e garantir o uso adequado da propriedade. O procedimento prevê a abertura de processo administrativo, com notificação formal ao proprietário, a quem é assegurado o direito de defesa. Passados três anos, assegurado o abandono, torna-se propriedade do Município ou do Distrito Federal.

Pestana explica que a maior parte das notificações chega por meio do Ministério Público, especialmente pela Promotoria de Urbanismo e Meio Ambiente. A prefeitura também recebe denúncias de moradores e vizinhos preocupados com a degradação ou com o risco de atividades ilícitas nesses locais. A partir daí, a Cagim avalia cada caso com base em critérios legais, como inadimplência de tributos e desocupação do imóvel, antes de iniciar o processo de arrecadação.

Para a Comissão, o desafio é transformar a arrecadação em um instrumento efetivo de política urbana, com destinação dos bens arrecadados para projetos de interesse coletivo, como habitação social, instalação de equipamentos públicos ou requalificação de áreas degradadas, conforme explica Eleonora Serralta, ex-presidente da Cagim, em entrevista ao Momento Jurídico.

A jurisdição

O Código Civil (CC) brasileiro surgiu em 2002, instituído pela Lei nº 10.406, para nortear obrigações e direitos dos indivíduos. São 2046 artigos divididos em duas grandes partes: Geral e Especial, sendo a Geral responsável por abordar temas como pessoas, bens e fatos jurídicos. O artigo 1.276 prevê a possibilidade de os municípios arrecadarem imóveis abandonados, como política pública para combater a ociosidade e o abandono de propriedades, especialmente em áreas urbanas.

Em Porto Alegre, a resposta governamental a essas novas possibilidades legais veio com a criação da Comissão de Análise e Gerenciamento de Imóveis Abandonados (Cagim), dentro da estrutura da Procuradoria-Geral do Município (PGM). A instituição da Cagim ocorreu a partir do Decreto Municipal nº 19.622/2016, que regulamentou o processo de arrecadação no âmbito municipal.

Embora o parágrafo 2º do artigo 182 da Constituição Federal de 1988 estabeleça a função social da propriedade urbana (deve ser utilizado em prol dos interesses da sociedade, e não apenas dos proprietários), o cenário em Porto Alegre revela um contraste entre o texto legal e a prática administrativa. Mesmo com a criação da Cagim, apenas 27 imóveis foram triados em quase uma década de atuação da Comissão e nenhum chegou a ser efetivamente arrecadado.

Para o Arquiteto e Urbanista e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Rafael Brener o principal obstáculo é a diferença entre a situação física e a situação legal dos imóveis. “Embora muitos prédios estejam visivelmente abandonados e deteriorados, juridicamente eles não se enquadram como imóveis legalmente abandonados. Isso acontece porque os proprietários, ao perceberem o risco de perder o bem, acabam tomando alguma providência mínima para manter a posse ou regularizar a situação, o que impede o enquadramento dentro da categoria de bem vago.”

Brener ressalta que muitos desses imóveis estão localizados em áreas já com infraestrutura, como o centro histórico da cidade, representando uma “oportunidade muito boa desperdiçada”. Ele argumenta que a dificuldade de acesso à moradia, especialmente para populações de baixa renda, decorre da incapacidade do poder público em direcionar soluções habitacionais. “Porto Alegre vive uma bolha imobiliária, com o mercado aquecido de um lado e, de outro, um crescimento expressivo da população em situação de rua”, comenta.

Olhar para os imóveis abandonados em Porto Alegre é constatar os entraves jurídicos e a ausência de uma política habitacional eficaz. O cenário é de uma cidade repleta de espaços ociosos, ao mesmo tempo em que cresce a demanda por moradia. Os resultados tímidos da Cagim demonstram que o poder público não dá conta de romper com o ciclo de abandono.

Reportagem desenvolvida para a disciplina Investigação e Transparência em 2025/1.