Setembro bate recorde de queimadas em 14 anos 

Em média, 2,8 mil novos focos diários de queimadas são registrados

Fernanda Nascimento

Por Amanda Steimetz, Pedro Pereira e Rudá Portanova   

Setembro de 2024 se aproxima rapidamente de recordes históricos de queimadas no território brasileiro. A fumaça cinzenta, o Sol vermelho e a chuva preta são sinais coloridos, quase didáticos, das falhas profundas na gestão ambiental de um país que tem como responsabilidade zelar por, pelo menos, 60% da Floresta Amazônica. E ainda há quem diga que o assunto é velho, saturado e até mesmo que “sempre se ateou fogo”. Nesta reportagem especial, o LabJ investiga os impactos das queimadas na saúde, no clima e nas políticas interna e externa do Brasil.  

As queimadas deste mês abriram caminho para questionamentos que não eram feitos desde 10 de agosto de 2019, quando produtores rurais da região amazônica se uniram para atear fogo em diversas áreas – no infame “Dia do Fogo”. Nas últimas semanas, a fumaça e a fuligem começam a atingir um espaço que até então não percebia a gravidade do tema: as grandes metrópoles brasileiras.  

Até hoje (26), o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) detectou 78.125 focos de incêndio ativos no território brasileiro. Cerca de 51% do total destas queimadas acontece na Amazônia. Com média estimada de 2,8 mil novos focos diários, a projeção é que o mês setembro tenha mais 90 mil casos em todo o Brasil. O número preocupa e indica um sério retrocesso: desde 2010 não se queima tanto quanto em setembro deste ano. Esses efeitos, que transitam das áreas rurais à zona urbana, atingem também a saúde pública.  

Crianças são as mais afetadas por problemas respiratórios 

Em Porto Alegre, dados levantados pelo Grupo Hospitalar Conceição (GHC) entre o começo de agosto e 12 de setembro indicam um aumento das hospitalizações por doenças respiratórias na comparação com 2023.  

As crianças são as mais atingidas. O número de internações na faixa etária até nove anos chegou a 138. De acordo com o GHC, os atendimentos representam um aumento de 56,6% das hospitalizações por doenças respiratórias.

Fonte: LabJ com os dados do GHC 

O relatório técnico também indica aumento nas internações na faixa etária dos 10 aos 19 anos. Neste caso, há uma diferença significativa na comparação entre 2023 e 2024 a partir do período entre 19 e 25 de agosto. Entre 26 de agosto e 01 de setembro deste ano houve 17 hospitalizações a mais do que o período correspondente de 2023.  

Fonte: LabJ com os dados do GHC 

Em todo o mês de agosto de 2024 houve 1.031 atendimentos por asma e/ou falta de ar entre 7.717 atendimentos. Entretanto, até o dia 12 de setembro, no mesmo período em que as fumaças em decorrência das queimadas se juntaram ao ar de Porto Alegre, foram 468 casos entre 2.971 atendimentos. O GHC considera esse aumento significativo.  

Para Marcelo Wierzynski, otorrinolaringologista do Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre (HPS), há um aumento perceptível das queixas por problemas respiratórios.  O inverno e a polinização podem contribuir para isso, mas o médico relata que após a chegada das fumaças na capital, é perceptível o crescimento das reclamações dos pacientes com o sistema respiratório. “Queixas de sensação de nariz fechado e seco. Irritação nasal no fundo da garganta, aquele pigarro. A primeira barreira onde passam as fumaças são o nariz e a garganta, onde as partículas maiores colam nas paredes desses locais e acabamos diluindo essas partículas”, afirma.  

Tanto o GHC quanto o especialista relatam que há uma mudança nos sintomas respiratórios e no aumento na demanda a partir da vinda das fumaças, mas ambos ressaltam a inexistência de dados comprovatórios, dificultando o conhecimento da causa direta nesses casos. 

Há fatores que agravam o quadro epidemiológico de Porto Alegre. No dia 10, o ar da cidade foi classificado como insalubre. Na mesma semana, a secretaria de Educação recomendou que as escolas públicas evitassem a realização de atividades ao ar livre. As escolas privadas também seguiram a mesma orientação. A precaução não é exagerada. Essa semana, no Distrito Federal, crianças passaram mal e desmaiaram em decorrência das fumaças.  

Reprodução: Lorenzo de Souza Rosa

Em relação à estrutura para suportar uma eventual piora dos quadros respiratórios, Marcelo Wierzynski acredita que as emergências do Rio Grande do Sul possuem os equipamentos necessários para lidar com o atual quadro de sintomas, mas não a estrutura para suportar uma eventual sobrecarga.  

A Secretaria de Saúde de Porto Alegre emitiu uma nota com recomendação e cuidados por conta da permanência das fumaças das queimadas no ar. Crianças menores de cinco anos, idosos, pessoas asmáticas, diabéticas ou hipertensas e gestantes podem ter mais complicações, por isso merecem atenção especial.  

Deputado petista afirma que queimadas são “ação política” 

O interesse público na temática levanta a necessidade de decisões legislativas e propostas de mudanças no conjunto de leis que regulam o uso do fogo no Brasil e o assunto não atrai apenas atenção no âmbito nacional. Com o Brasil na mira destes holofotes, eventos como a Cúpula de Líderes do G20 – que acontecerá em novembro – e a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (AGNU) são importantes momentos para as decisões políticas que cercam o tema.  

A abertura da Assembleia, iniciada nesta terça-feira (24) contou com o discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em seu discurso, o presidente brasileiro citou as mudanças climáticas e as queimadas e reforçou que a origem dos focos de incêndio é criminosa: “Além de enfrentar o desafio da crise climática, lutamos contra quem lucra com a degradação ambiental. Não transigiremos com ilícitos ambientais, com o garimpo ilegal e com o crime organizado”, afirmou. Quando falou a respeito de soluções do desmatamento, o petista afirmou que pretende ouvir as populações tradicionais que vivem nas regiões das queimadas e prometeu que irá acabar com o desmatamento até 2030. Em relação aos acordos climáticos, Lula afirmou: “O planeta já não espera para cobrar da próxima geração e está farto de acordos climáticos que não são cumpridos, está cansado de metas de redução de carbono negligenciadas, do auxílio financeiro aos países pobres que nunca chega”. 

Foto: Ricardo Stuckert / Presidência

Em entrevista ao LabJ, o deputado federal e coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista da Câmara dos Deputados, Nilto Tatto (PT/SP), ressaltou o interesse político envolvido na ação das queimadas em um contexto no qual o país está nos holofotes mundiais: “Tem uma ação política, podemos dizer assim, por trás. E isso mancha a imagem do país. Então, a gente sabe que tem aí uma ação coordenada para manchar a imagem do presidente Lula. Em especial, porque o Brasil volta a ter protagonismo internacional nessa agenda do clima global. […] O presidente Lula vai fazer a abertura da assembleia da ONU, no ano em que o Brasil é presidente do G20, véspera da COP 30 (Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas) do ano que vem.”, afirmou.  

O deputado reafirma o compromisso da Frente Parlamentar Ambientalista: “Nós soltamos um documento que é uma nota para a sociedade, mas em especial para dentro do próprio Congresso, onde a gente destacou o conjunto de projetos de leis que deveriam avançar na aprovação e projetos que deveriam ser arquivados”. A nota técnica foi divulgada no site do grupo de parlamentares. 

Combate às ações criminosas  

As ações criminosas com o uso do fogo são determinantes para compreender o crescimento no número de queimadas no mês de setembro de 2024. Para Bruno Peixoto, especialista em Direito Ambiental e Urbanístico, a criminalidade representa grande parte da origem das queimadas no território brasileiro. O advogado acredita que a distribuição do fogo no país se divide entre incêndios criminosos e o descontrole da queima controlada devido ao clima seco. No inverno, é comum que o tempo fique seco em regiões ao norte do país, mas devido ao efeito estufa, as agora tão faladas mudanças climáticas e eventos extremos estão próximas de se tornarem rotina. No mês de junho, 1.124 municípios entre Amazonas e São Paulo sofreram com as consequências dessas mudanças. O número assusta e representa cerca de um quinto das cidades brasileiras. 

A Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, estabelecida pela lei 14.944, este ano, tem como objetivo restringir as possibilidades legais de se colocar fogo nas áreas rurais e é uma resposta do governo federal ao momento vivido no país. Márcia Buhring, professora de Direito Ambiental na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), acredita que a lei trará impactos significativos para o Brasil: “Ela institui a regulamentação do uso do fogo em áreas rurais, busca diminuir o uso indiscriminado das queimadas ao introduzir diretrizes para que essa prática seja gradualmente substituída por métodos mais sustentáveis, especialmente em comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas”, afirma a especialista. 

Na lei, existem exceções que permitem a queima controlada em situações específicas. Nestas situações, enquadram-se a produção de agropastoris e/ou agroflorestais, tendo fins de pesquisa científica e tecnológica, ocorrendo em áreas previamente definidas. A lei também permite que, mediante comunicação prévia, comunidades indígenas e quilombolas produzam queimadas legais. Além desses casos, quando o fogo possui alguma justificativa para práticas agropecuárias familiares, treinamentos de combate ao fogo e capacitação de brigadistas florestais, o fogo também é permitido. 

Segundo Pedro de Abreu, professor de Ecologia Aplicada, Meio Ambiente e Sustentabilidade da PUCRS, existem técnicas agrícolas ilegais que utilizam as queimadas. “Uma das ferramentas de expansão ilegal de área rural consolidada é essa. Utilizar a estação de seca para queimar floresta. Aquilo deixa de ser floresta para plantar lá depois.”, afirma o especialista. 

Os entraves legislativos, somados às tensões políticas e aos problemas urbanos, como a saúde pública, postam um complexo desafio que transcende a pauta ambiental e deve ser a prioridade de qualquer governante no Brasil. Em 2024, arde como nunca – das florestas aos narizes e gargantas.