“Sonho veio da necessidade”, diz mãe solo, negra e aprovada em Medicina

Aos 36 anos, Jennifer Chaves fez cursinho popular e conseguiu vaga na federal

Andrei dos Santos Rossetto

Reportagem de Raíssa Juliane Baptista de Mattos

Foto: Raíssa Juliane Baptista de Mattos

Os dias de Jeniffer Chaves, de 36 anos, eram divididos em três turnos de trabalho: de dia, trabalhava fora; de noite, em casa. Mãe solo de três meninas, agora ela se dedica exclusivamente aos estudos que a formarão médica no futuro. Neste ano, ela foi aprovada em Medicina da UFCSPA (Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre).

A conquista teve apoio de um cursinho popular que prepara jovens da periferia para o ingresso no ensino superior, o Emancipa. Chaves já tinha um currículo excelente. Ela é formada em outras duas graduações: Comunicação Social, com bolsa Prouni, e História. Do desejo de trabalhar com assistência social e melhorar a vida financeiramente, pensou: “Por que não Medicina?”.

Abaixo, os principais trechos da entrevista, concedida antes das enchentes que afetaram o Rio Grande do Sul e também sua casa.

De onde veio o sonho de cursar Medicina?

O sonho veio, na verdade, de uma necessidade. Eu queria fazer algumas mudanças na minha vida. Tinha uma jornada de trabalho muito extensa, trabalhava de manhã, de tarde e de noite. Ganhava relativamente pouco para minha condição de ser uma mãe solo de três meninas. Então, eu pensei em continuar em um trabalho na área assistencial, onde eu pudesse ser bem remunerada. Pensei: “Por que não Medicina?”

Já possui alguma graduação anterior?

Sou formada em Comunicação Social, bolsista pelo Prouni. Depois cursei História, uma complementação pedagógica, porque eu queria trabalhar na área da educação e fiz pós-graduação em Antropologia. Trabalhei como educadora social com crianças em vulnerabilidade social.

Sua família te apoiou durante o processo?

A minha família é meio complexa, como toda família vinda da periferia. Minha família se resume a mim, minhas meninas e minhas irmãs. Eu preferi não contar sobre o processo [seletivo] para ninguém. As meninas sabiam mais ou menos que a mãe ia estudar. A mais velha sabia. Mas preferi passar por isso sozinha.

Como se sentiu após ver a aprovação?

Nossa, eu não acreditei…Senti muitas coisas. O processo do edital foi muito difícil, muito doloroso, acho que eu ainda não acreditei nisso.

Você sente que o cursinho popular te ajudou a chegar no seu objetivo?

Eles me ajudaram tanto no incentivo como na permanência. Eles ficavam com as meninas, no final do curso, para que eu pudesse estudar. Me ajudaram no edital que foi bem confuso. Eu não me considero uma pessoa leiga, mas eu tive bastante dificuldade. Restavam duas horas para acabar o edital e ainda faltavam vários documentos que eu nem imaginava que eles pediriam. O edital foi bem sacana, uma política excludente. Então, eles me ajudaram muito, como uma família.

Acredita que a educação popular seja necessária na vida das pessoas?

Com certeza. Especialmente porque é um meio onde dizem que a educação é para todos, mas não é. Quando coloquei meus pés naquela universidade, que é pública, não vi nenhum dos meus semelhantes. Não vi gente pobre, gente negra, pessoas trans. Eu não vejo gente de verdade, eu vejo como aquela analogia da fábrica de salsicha, todo mundo em um único padrão, todo mundo muito louro, falando vários idiomas, muito viajado… O sistema de educação popular ajuda a dar uma nivelada.

Por quais pessoas você sente maior gratidão nesse processo?

Se fosse de professores, seriam os professores de História, Sociologia, Matemática… E, por incrível que pareça, da minha família seria minha filha mais velha. Porque enquanto eu estava fora, ela segurava a barra para mim e ela nem imagina isso, eu acho.

Como foi conciliar a graduação com a maternidade?

Boa pergunta, várias pessoas já me perguntaram isso. Eu não sei muito bem uma regra pois sempre foi somente eu e as gurias [filhas]. A diferença é que antes, de dia, eu ficava trabalhando fora e, de noite, trabalhando em casa. Agora, eu fico estudando o dia inteiro fora e vou só de noite para casa. A renda se comprometeu bastante, estou atrás de auxílios que me mantenham estudando. Mas a logística é a mesma, quem é mãe sabe como que faz. Não tem muito segredo, um ajuda o outro, um vizinho espia, alguém um dia leva na escola, minhas irmãs quebram um galho.

Qual foi tua maior inspiração?

Nossa! Muitas! Costumo dizer que foram as minhas meninas, de poder ter um respiro em casa, digo em um ponto de vista emocional, acho que se eu não tivesse filhos eu não teria uma inspiração emocional para poder fazer.

O que você tem a dizer às pessoas da tua realidade que têm o sonho de ingressar na Medicina também? 

Uma coisa muito importante é que nós não somos iguais e está tudo bem. Mas, dentro de nossas diferenças, devemos procurar uma brecha, uma maneira de estudo, que não funciona igual para um ou para outro. Acredito que dentro desta realidade específica, tu tens que procurar o teu “rolê”, tem gente que se dá bem decorando [conteúdo], tem gente que se dá bem [ouvindo] podcast, tem gente que tem notebook, livro… Eu não sei a receita, mas tu precisas entender que tu és diferente e tu tens que se adequar nas tuas diferenças. Meu processo demorou dois anos, outros duraram três , quatro… A ideia é começar do ponto de partida que a gente é diferente e que você deve se adequar com as suas diferenças. Continuar é difícil, eu estou há dois meses [estudando], e tem sido difícil. Mas não vou desistir, pois eu sei que vai ser uma “girada” incrível na minha vida. Digo financeiramente, socialmente e tudo “mente”.

Esta reportagem foi desenvolvida para a disciplina de Reportagem e Entrevista, do curso de jornalismo, sob a supervisão da professora Paula Sperb.