Moradores do Condomínio Princesa Isabel são vítimas de violência policial em POA

Até crianças foram submetidas a abusos e ilegalidades praticados pela Brigada Militar

Fábio Canatta

Por: Gabriel Pippi e Lorenzo Manzoni.

Na região central de Porto Alegre, a cerca de quinhentos metros do Palácio da Polícia, está localizado o condomínio Princesa Isabel, chamado por parte da imprensa de “Carandiru”, numa analogia a uma antiga penitenciária paulista. Segundo o doutor em sociologia e mestre de Direitos Humanos Marcos Rolim, “o apelido é pejorativo e estigmatizador, porque sugere semelhança de um conjunto habitacional com um presídio que, aliás, foi palco de um dos maiores massacres em prisões no mundo. Quando o público recebe uma notícia com esse apelido, se produz a ideia de que os moradores do condomínio são criminosos”. E é justamente assim, como criminosos, que a polícia trata as pessoas que vivem no local.

No dia 17 de maio, uma sexta-feira, por volta das onze horas da noite, policiais do 9° Batalhão da Brigada Militar invadiram o condomínio. Não havia uma operação oficial programada para a data. Quem estava no prédio naquela noite denuncia que os policiais já “entraram atirando”, provocando grande pânico nas pessoas. Aqueles que estavam no pátio no momento, correram para dentro de suas casas. Outros tentaram escapar por um segundo portão, que leva à parte externa,  do outro lado do condomínio.

Entre esses moradores estava Vladimir Abreu de Oliveira, de 41 anos. Pai de nove filhos, Vladimir morava com a mãe no condomínio, onde residia há mais de 10 anos. Ao tentar escapar dos disparos, ele deu de cara com mais uma viatura da Brigada, que o abordou de imediato. Segundo testemunhas, em uma ação rápida, os policiais algemaram Vladimir e o colocaram dentro do veículo. Esse foi o último momento em que Vladimir foi visto com vida pelos vizinhos. Vinte e oito dias depois, cinco policiais seriam presos acusados de torturar, matar e ocultar o cadáver de Vladimir, encontrado com marcas de violência bem longe do local. As circunstâncias seguem sendo investigadas.

A revolta com a ação da polícia e o desaparecimento de Vladi — como era carinhosamente conhecido na vizinhança — veio na forma de um protesto com cerca de 50 pessoas, incluindo familiares, vizinhos e amigos de Vladimir. Na ocasião, dois ônibus foram queimados, com o intuito de chamar a atenção para o caso.

Camisa em homenagem a Vladimir,  usada pelos amigos e familiares. Foto: Lorenzo Manzoni

Os moradores do condomínio denunciam que, desde o protesto, uma série de outras ilegalidades passaram a ser cometidas quase que diariamente pela polícia contra eles. Na noite do protesto, o direito de ir e vir foi cerceado. A Polícia de Choque, que foi ao local para controlar a manifestação, teria entrado no condomínio, ocupado os corredores e impedido as pessoas de entrar e sair de seus próprios apartamentos. 

“A Choque entrou aqui. A Choque esteve aqui na escada. A gente não podia nem correr para liberar o corpo do meu irmão, porque a gente não podia sair. E quem tava lá na rua não podia entrar. A gente só conseguiu alguma coisa porque a corregedoria veio e conseguiu tirar a Choque daqui de dentro. A gente teve que ligar o ventilador. As crianças tiveram que subir para o quarto andar, porque ficou um cheiro muito forte de gás (usado pelos policiais) aqui”, conta Patrícia Abreu de Oliveira, de 46 anos, vizinha e irmã de Vladimir.

Vídeo da Policia de Choque entrando no condomínio com as armas em punho. Vídeo publicado pela página Cidade Baixa Porto Alegre via Instagram.

Uma outra moradora, de 48 anos, que preferiu não ser identificada por medo de represálias da polícia, diz que a filha foi uma das vítimas da violência policial.
“Eu tenho uma filha especial, ela tem 20 anos, mas a mentalidade dela é de uma criança de 6 anos. No dia do protesto ela desmaiou por conta das bombas (de gás). Minha filha ficou a noite inteira chorando, pois não passava a dor nos olhos. Eu não a levei no médico porque tive medo deles não deixarem nós entrarmos novamente. Ela está muito transtornada e com muito medo da polícia”, relatou.

Os moradores relatam que os abusos e incursões policiais no condomínio persistiram nos dias seguintes. A polícia passou a impedir que os portões do condomínio fossem fechados e mantinham viaturas nas saídas. Eles revistavam todas as pessoas que entravam ou saiam do prédio, inclusive crianças. Os moradores afirmam que carros, roupas, compras, comida e até mesmo o lixo era aberto e revistado pelos militares. 

Uma moradora do condomínio, que também não será identificada, passou pelo constrangimento de ser revistada junto com a filha ao sair de casa. “Ela é menor, eu sou mãe dela. Estava com ela, então não tinha o porquê, eu tava presente. Eles (policiais militares) falaram que estavam recebendo ordens. Mandaram ela abrir o casaco, apertaram os bolsos dela, a perna dela, pra ver se ela tinha alguma coisa nas calças”.

Com o cerco instaurado nos arredores do condomínio, a Brigada Militar manteve viaturas, por pelo menos um mês, nas três avenidas que dão acesso ao complexo habitacional. Dois policiais também acompanhavam todo o movimento de entrada e saída em cada um dos portões do prédio. Após o desaparecimento de Vladimir, a presença da polícia gerava um único sentimento nos moradores: pânico.
Vídeo feito de dentro do condomínio, mostrando a presença da polícia no outro lado da Av. Princesa Isabel. Vídeo: Lorenzo Manzoni.

Para além das revistas e do cerco imposto pela BM, uma moradora relatou à reportagem que alguns vizinhos foram submetidos inclusive a sessões de tortura. “As pessoas apanham dentro dos apartamentos. A gente corre, vai pra frente dos blocos, pra frente dos apartamentos, pra socorrer quem tá sendo agredido, torturado, né”.

Esse tipo de relato é confirmado por outros moradores do condomínio. “Eles estão entrando na casa das pessoas sem mandado. Eles querem que tu tenha droga dentro de casa, sendo que tu não tem. Eu trabalho. Ontem eles entraram na minha casa e agrediram meu filho. Pegaram meu guri. Bateram nele querendo tirar alguma coisa dele, sendo que ele não tá fazendo nada”, contou uma das vítimas. 

O professor Marcos Rolim não tem dúvidas: não há qualquer amparo legal nesse tipo de ação policial.
“Atitudes desse tipo caracterizam abuso policial, violência, constrangimento ilegal e humilhação imposta a pessoas pobres que não podem ser tolerados. A revista policial só pode ser realizada mediante fundada suspeita. Não há suspeição genérica, nem suspeição por território ou endereço”

No dia 3 de junho, foi realizada uma operação da Polícia Civil para prender quatro manifestantes suspeitos de incendiar os dois ônibus. Os homens, que já haviam se apresentado no Palácio da Polícia um dia após a manifestação, ficaram oito dias presos e respondem em liberdade pelos crimes de incêndio, dano qualificado e associação criminosa. Nas redes sociais, a irmã de Vladimir protestou: “Quer dizer que um ônibus vale mais que a vida do meu irmão? Operação pra prender quem quer justiça teve, e pra prender esses assassinos?”

Dois dias depois, em mais uma operação não explicada pela BM, policiais militares invadiram o Condomínio Popular Princesa Isabel e derrubaram os portões do condomínio, aterrorizando os moradores. 

Vídeo enviado por moradores, mostrando policiais quebrando os portões do condomínio.

Além de levar embora os portões, os policiais arrombaram a porta de um apartamento e ameaçaram duas moradoras com suas armas. Segundo testemunhas, o motivo seria a suspeita de que alguém estivesse escondendo drogas na residência. Nenhum entorpecente foi encontrado no local.

Imagem da porta quebrada por policiais militares, enviada pela família.

Na madrugada do dia 8 de junho, a força tática realizou uma nova incursão no condomínio Princesa Isabel. Mais uma vez, revistou moradores sem qualquer explicação. Em um áudio enviado para a reportagem, Patrícia relatou em tempo real o que aconteceu no condomínio.

As denúncias de agressões e perseguição a familiares e conhecidos de Vladimir ultrapassam inclusive os muros do condomínio. Na Vila Cabo Rocha, a cerca de oitocentos metros do Princesa Isabel, a polícia invadiu a casa de pessoas próximas de Vladimir. As vítimas afirmam que os policiais reviraram os seus pertences, quebraram a câmera de segurança da casa e agrediram um homem, que teve ferimentos na boca e braços.

Vídeos enviados pelos familiares, mostrando os ferimentos causados pela polícia, para os repórteres.

“Ele é tio das minhas netas. Eles querem assustar, querem fazer a gente calar a boca”, denunciou, Patrícia.

A Pesquisa de Vitimização, realizada pelo Instituto Cidade Segura em Porto Alegre, no ano de 2017, mostrou que a confiança da população nas polícias aumenta entre os brancos, com mais idade e mais renda, e despenca entre os jovens, negros e de baixa renda. “Isso sugere a existência de dois padrões de policiamento: um para o atendimento das demandas dos mais privilegiados socialmente, outro para a repressão aos pobres,” explicou Marcos Rolim.

Sequestro e assassinato de Vladimir

Vladimir foi abordado e levado pela BM, em frente a um dos portões do Condomínio Princesa Isabel, na noite do dia 17 de maio. A suspeita da família é que a prisão de Vladimir era uma tentativa de conseguir informações sobre uma suposta facção que teria o domínio do local. “Não tinha por que prender o Vladi. Tiraram o Vladi daqui com a intenção de sequestrar e tirar informação do condomínio, sendo que ele não teria como dar informação” — disse Patrícia, irmã de Vladimir.

A partir do momento em que Vladimir foi levado, Patrícia e toda a família passaram a procurá-lo. A busca começou pelo Hospital de Pronto Socorro (HPS) e pelo Palácio da Polícia, mas não havia nenhum registro da entrada dele. Assim foi durante todo o dia de sábado (18). Sem respostas, a família organizou um protesto pacífico, reunindo vizinhos e amigos de Vladimir, exigindo explicações sobre o paradeiro do mesmo.

Sem informações do paradeiro de Vladimir, a família seguiu ligando para o Palácio da Polícia e para o HPS. Vladimir, até então, não havia dado entrada em nenhuma delegacia ou hospital de Porto Alegre. Na tarde do domingo (19), a família foi até o IML, onde um corpo não identificado — encontrado no bairro Ponta Grossa, a mais de 10 quilômetros do Condomínio Princesa Isabel — havia dado entrada como vítima de afogamento, devido aos alagamentos que assolaram a capital durante o mês de maio. A família reconheceu o corpo de Vladi com sinais de espancamento. 

“Ele estava muito machucado. Com queimaduras. Com pauladas. Ele estava irreconhecível, tanto é que a gente pediu o caixão aberto, porque eu não tinha noção do tanto que ele estava machucado. E quando a minha mãe chegou no cemitério, a gente teve que fechar o caixão, porque não parecia o meu irmão que estava ali dentro. Era outra pessoa, ele estava totalmente desfigurado. Ele apanhou até a morte. Eles mataram o meu irmão, a paulada, choque”, relatou Patricia.

Faixa colocada na varanda de Patrícia, no Condomínio Princesa Isabel. Foto: Lorenzo Manzoni

Segundo Patrícia, policiais da Corregedoria da Brigada Militar justificaram as marcas no corpo de Vladimir afirmando ser causa do contato com destroços dentro da água em que ele foi encontrado.

Assim que foi confirmada a morte de Vladimir, familiares, amigos e vizinhos da vítima organizaram uma manifestação por justiça, enquanto Patrícia e outros familiares mais próximos ainda estavam no IML. Como forma de protesto, os manifestantes abordaram dois ônibus, evacuaram os passageiros e atearam fogo nos dois veículos, na esquina entre as avenidas João Pessoa e Princesa Isabel. 

Um mês de luta

Um mês após a confirmação da morte de Vladimir Abreu de Oliveira, familiares e amigos organizaram uma homenagem em frente ao portão do Condomínio Princesa Isabel, onde ele foi abordado. No dia em que se completou um mês da confirmação da morte de Vladimir, cerca de 50 pessoas oraram, cantaram e pediram justiça.

Crianças se emocionam em homenagem. Foto: Lorenzo Manzoni

Em frente ao portão do condomínio em que a família fazia a homenagem, estava estacionada uma viatura da BM do outro lado da rua. Ainda que o movimento  tenha sido feita de maneira pacífica e somente na calçada do Princesa Isabel, pelo menos mais duas viaturas da Brigada chegaram ao local depois do chamado por reforço. 

Placa feita em homenagem a Vladimir. Foto: Lorenzo Manzoni

“A gente estava fazendo uma homenagem. Cercaram a gente. A gente não viveu o luto da gente, porque é ruim olhar pra uma viatura”, disse Patrícia.

Investigação

No dia 7 de junho, um sargento e um soldado do 9º Batalhão da Polícia Militar foram presos preventivamente após ordem da Justiça Militar. Os nomes não foram divulgados. “A gente quer que mostre quem foi. Por que é um sargento eles não podem dar nomes? A gente só quer o que é de direito da gente, saber quem foi que fez. Se fosse o Vladi que tivesse matado um policial, o nome dele já estava escrachado”, protestou Patrícia.

Rolim explica que nome ou fotos de suspeitos da prática de crimes nunca devem ser divulgados, a menos que o suspeito esteja foragido. Entretanto, o professor faz um adendo: “Esse é um princípio fundamental do Direito que, no Brasil, é quase sempre ignorado quando os suspeitos são pobres e negros”.

O Delegado da Polícia Civil RS, André Luiz Freitas, não quis dar entrevista. Em contato com a reportagem, se limitou a informar que “o inquérito policial que apura as circunstâncias do desaparecimento e morte de Vladimir tramita sob sigilo”. Disse ainda que aguarda os dados técnicos e os laudos periciais para prosseguir a investigação.

A assessoria de imprensa da BM não respondeu ao nosso pedido de entrevista. Em nota à imprensa, informou: “A Brigada Militar, por meio do 9º Batalhão da Polícia Militar, informa que concluiu em 14 de junho o Inquérito Policial Militar (IPM) que investiga os fatos envolvendo o desaparecimento e morte de Vladimir Abreu de Oliveira após ser submetido à uma abordagem policial militar. […] As investigações apontaram o envolvimento de cinco policiais militares, dois indiciados por tortura seguida de morte e ocultação de cadáver, um por tortura por omissão, um por prevaricação e um por omissão de socorro. Além disso, o procedimento concluiu pelas infrações disciplinares correspondentes […]”

A violência policial

Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no ano de 2022, pelo menos 17 pessoas foram mortas todos os dias em intervenções policiais (em serviço e fora de serviço), totalizando 6.429 vítimas de violência policial no período de um ano. Uma baixa de 64 mortes, se comparado com 2021.

De acordo com o anuário, 99,2% das vítimas de violência policial são homens; 83,1% das vítimas são negras e 99,5% dessas mortes são causadas por armas de fogo.

O Rio Grande do Sul registrou em 2022 um total de 106 vítimas de violência policial, 50 a menos que no ano anterior. Desses casos, 34 foram registrados em Porto Alegre, que, em 2021, totalizou 39.