Uma enchente nada democrática: prejuízo pelas cheias é maior em comunidades periféricas 

Andrei dos Santos Rossetto

Reportagem de Gustavo Fontella e Marco Charão

As águas que inundaram o Rio Grande do Sul em 2024 não foram apenas um mero desastre natural. Elas revelaram a face cruel da injustiça climática, expondo as desigualdades sociais que marcam a vida de milhares de pessoas. O que era, para alguns, antes, uma realidade distante se tornou uma tragédia real, deixando um rastro de destruição e sofrimento especialmente em comunidades marginalizadas.

Os dados das enchentes assustam: 473 dos 497 municípios do Rio Grande do Sul foram afetados pelas chuvas. Até a publicação desta reportagem, foram confirmadas 169 mortes e mais de 800 feridos em decorrência das chuvas, segundo a Defesa Civil. São mais de 2,3 milhões de pessoas afetadas, das quais 581 mil desalojadas e 45 mil vivendo em abrigos.

Embora os dados indiquem que as cheias atingiram, de alguma forma, quase todos os gaúchos, os impactos nas vidas das pessoas são muito distintos. É um fenômenos que os especialistas chamam de injustiça climática. Os desafios e as condições de retorno, reconstrução e recomeço são mais complexos para ribeirinhos, moradores de periferias, pessoas menos instruídas, pretas, pardas, mulheres, mães e idosos, temos um caso de injustiça climática. A vulnerabilidade que os encobre durante os dias normais se expõe e acentua de forma brutal durante um evento extremo, garante Lara Ely, jornalista e especialista em gestão ambiental.

”Eles sofrem mais porque são pessoas que têm menores recursos financeiros e são pessoas que muitas vezes que interseccionam vários marcadores sociais: pessoas pretas, muitas vezes mulheres com baixo grau de instrução, com trabalho subemprego. Então vai ficando cada vez mais difícil para que essas pessoas retomem a sua condição que já era uma condição dificultosa.” 

Rodrigo Jesus, porta-voz da equipe de Justiça Climática do Greenpeace Brasil, denuncia o descaso do Estado na falta de medidas efetivas de prevenção e apoio às comunidades mais impactadas, especialmente em áreas de risco, contribuindo para a intensificação dos efeitos das mudanças climáticas. 

Quando se fala em negacionismo científico é justamente não levar em consideração o elemento da previsibilidade que os estudos informam. Não é alarmismo, e sim previsibilidade. Precisamos lidar com cenários de baixo, médio e longo impacto, ações de baixo, médio e longo prazo, para se traçar o planejamento em um programa que lide com essa temática no país.”

O Índice de Bem-Estar Urbano Local (IBEU Local) revela as profundas disparidades que assombram Porto Alegre. Bairros como Farrapos, Humaitá, Anchieta e Sarandi emergiram como epicentros de uma realidade marcada pela precariedade habitacional e pela falta gritante de infraestrutura. A pobreza e a marginalização se entrelaçam nesse contexto, agravando ainda mais a situação das comunidades afetadas.

Os dados revelam uma realidade cruel: enquanto as áreas centrais da cidade desfrutam de índices elevados de bem-estar urbano, as periferias se afogam em condições habitacionais desfavoráveis e infraestrutura deficiente. A falta de saneamento básico, coleta de lixo e drenagem urbana eficiente contribuíram significativamente para o agravamento das enchentes, amplificando os danos e o sofrimento das comunidades mais vulneráveis.

Menino Deus e Humaitá são dois bairros da cidade fortemente atingidos pelas chuvas. Em ambos, parte dos moradores precisou deixar as suas casas durante as cheias. No primeiro, uma região de classe média, o problema foi ao menos parcialmente solucionado em poucos dias. Já o Humaitá, uma parte da cidade historicamente ocupada por uma população pobre e marginalizada, tem – hoje, dia 31 de maio – uma parte importante do seu território ainda debaixo d’água, um mês depois de iniciada a enchente em Porto Alegre.

O IBEU Local também destaca regiões específicas, como as Ilhas do Delta do Jacuí e a várzea do Rio Gravataí, incluindo os mencionados bairros, como áreas de grande extensão territorial com condições habitacionais precárias. No último levantamento, feito em 2010 (dados mais atualizados disponíveis), é possível observar que as áreas que foram mais afetadas pelas enchentes já eram áreas de risco ocupacional. 

(Mapa do índice de Bem Estar Urbano da Região Metropolitana de Porto Alegre. Fonte: Observatório das Metrópoles) 

O bairro Humaitá se localiza na Zona Norte de Porto Alegre, contando com cerca de 11,404 pessoas, de acordo com o mais recente censo do IBGE. A região sofre recorrentemente com enchentes. Desde o início das fortes chuvas que assolam o estado, a região está alagada, com relatos de moradores que afirmam que as águas, em alguns pontos, ultrapassaram 1m70cm de profundidade.

Moradores da região fecharam uma pista na rodovia BR-290, a Freeway, durante a manhã do dia 27 de maio. A manifestação pedia solução para o problema que persistia no bairro, enquanto as demais regiões da cidade já haviam secado. Eles pediam, por exemplo, a instalação de uma bomba móvel para drenar a água que inunda a região desde o dia 3 de maio.

(Mapa comparativo entre as áreas alagadas na enchente de 2024 e a renda média. Fonte: Observatório das Metrópoles)

No refeitório do abrigo do Parque Esportivo da PUCRS, encontramos Luiz Carlos Almeida dos Santos, um homem preto de 75 anos, juntamente de amigos e de sua esposa, Jurema de 65, com quem é casado desde 1978. Luiz é morador da região do Humaitá há 58 anos, lugar onde criou dez filhos e seis netos. “Não quero voltar para lá, tenho medo que isso aconteça de novo. O local não é apropriado para a construção, não tem um bom escoamento de água e é perigoso.”

(Luiz Carlos Almeida dos Santos concede entrevista a respeito das enchentes. Foto: Antonio Mariano) 

No dia 4 de maio, acordou para tomar café e já se deparou com a água no primeiro andar de sua casa, e junto com a sua esposa tiveram  que se locomover para a residência de amigos na Vila Farrapos. Ainda não teve a oportunidade de voltar para ver os estragos, mas relata que amigos passaram de barco e dizem que a água chegou no teto das casas na rua onde vive.

Luiz conta que a água nunca havia entrado na sua casa, mas recorrentemente alagava a rua, dificultando a passagem e exalando um cheiro forte de esgoto. Antes de se aposentar, trabalhava entregando jornal em cidades próximas, devido à atividade, continuava morando na região, para facilitar na locomoção.

(Avenida Ceará, um dos acessos ao Humaitá para os resgates. Foto: Sofia Villela) 

A tragédia das enchentes de 2024 no Rio Grande do Sul não pode ser dissociada do descaso e da falta de planejamento urbano que permeiam décadas de políticas públicas inadequadas. A ocupação desordenada de áreas de risco, aliada à ausência de investimentos em infraestrutura resiliente e à falta de políticas eficazes de adaptação climática, criou um caldo de cultivo para a catástrofe que testemunhamos.

Em nota a Secretaria de Imprensa da Presidência da República afirma que foram liberados R$ 325 milhões para ações da defesa civil no Estado do Rio Grande do Sul:

“Para facilitar a liberação de recursos, o Governo Federal passou a aceitar planos de trabalho com simples comprovação fotográfica e descrição das necessidades de reconstrução causadas pelos desastres. As cidades gaúchas que ainda não receberam os recursos precisam apenas apresentar os planos de trabalho ao Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional. Todos os recursos solicitados estão garantidos e prontos para o repasse.” – afirmou a secretaria em nota.

Porém, para Rodrigo Jesus, além da criação de decretos de emergência e calamidade pública para ter acesso a recursos advindos do Governo Federal, é dever das prefeituras garantir a implementação de projetos e ações permanentes que visem a prevenção do risco de desastres, em diálogo direto com as populações vulnerabilizadas: 

“Não podemos continuar construindo gabinetes de crise somente na iminência do desastre.” – Comenta Rodrigo Jesus sobre o descaso das prefeituras.

A tragédia das enchentes de 2024 no Rio Grande do Sul é um alerta contundente sobre a urgência de se combater a injustiça climática. É necessário um engajamento conjunto de governos, organizações da sociedade civil e indivíduos para implementar políticas públicas eficazes, investir em infraestrutura resiliente, promover a educação ambiental e garantir o acesso a serviços básicos para todas as comunidades. A luta pela justiça climática é uma batalha por um futuro mais equitativo e sustentável para todos.

A respeito das lições que ficam sobre o tema, Lara Ely traz aspectos que vão de dar mais importância para o assunto, como educação climática nas escolas, maior repercussão da mídia e maior repercussão pela Defesa Civil.

“A gente pode trabalhar o assunto de forma mais recorrente, trazer a pauta climática para a nossa rotina de cobertura midiática, não somente na época de uma catástrofe. A educação climática nas escolas deve acontecer para que se saiba como agir. E a Defesa Civil deve ser mais alarmista em situações de identificação de riscos, fazer a informação chegar para todos, e não apenas os cadastrados no SMS da Defesa Civil, usar amplamente os meios de comunicação e de contato com a população, para que todos saibam de forma mais categórica a situação.”