Edgar Duvivier: “O difícil da escultura é você botar a alma da pessoa lá dentro”

Em passagem por Porto Alegre, o artista conta sobre sua história, trajetória profissional e visão sobre a arte

Andrei dos Santos Rossetto

Entrevista por Bruna Strehl de Mello

foto: Divulgação

Edgar Duvivier não cabe em apenas um rótulo. Escultor, músico, pintor, ilustrador e escritor, Duvivier acumula mais de 40 anos de carreira como artista profissional. Reconhecido, em especial, por suas esculturas e canções no saxofone, ele também tem três livros publicados. Atualmente, é parte da dupla musical com o violonista argentino Dami Andres e comercializa suas esculturas, desenhos e pinturas em um site próprio.

Edgar Duvivier é pai do ator Gregório Duvivier, de Barbara Duvivier e Theodora Duvivier. Hoje em dia, com a carreira já consolidada e reconhecida nacionalmente, faz shows em diferentes estados e países com seu duo e tem esculturas espalhadas por diversos lugares. Algumas delas são: Clarice Lispector, no Leme (RJ), Nelson Rodrigues, em Copacabana (RJ), Marcel Proust, em Cabourg, na França e Pepe Mujica, em Bagé  (RS). Aproveitando seu último destino de shows, em uma Porto Alegre antes da enchente, fizemos uma entrevista exclusiva:

Você já veio algumas vezes ao Rio Grande do Sul profissionalmente, tanto para shows, quanto para inauguração de estátua em Bagé, qual é sua relação com o estado?

Eu vim antes porque já ganhei um prêmio Kikito em Gramado. E ganhei outro também, na época era o Prêmio Lei Sarney para Cultura. Fiquei um tempão sem vir. Já estamos na terceira vez nos mesmos lugares: Guernica, espaço 373 e Café Cantante. A gente faz o circuito aqui da cidade. Fomos chamados de novo. A gente podia ter vindo e nunca mais ninguém querer ver a gente de volta, né? Mas como a gente teve outros convites, a gente voltou e vamos voltar sempre que tiver.

Você é um artista múltiplo: esculpe, toca saxofone, escreve… Como a arte entrou na sua vida?

Eu entrei na arte porque eu nasci no ateliê de escultura. Meu pai era escultor, minha mãe também. Minha mãe era pianista, meu pai tocava sax. E minha mãe era uma boa pianista, mas uma má professora. Meu pai era um mau saxofonista e um bom professor, então ele me ensinou saxofone. Minha mãe nunca conseguiu me ensinar piano. Minha mãe era daquelas professoras que não entende quem não sabe fazer o que ela sabe fazer, mais impaciente. Meu pai não, ele adorava ensinar. E a minha brincadeira, quando minha mãe saía, era brincar com barro, com argila, máquinas, já que o ateliê do meu pai era em casa. Então, eu desde pequenininho mexia com isso.

E especialmente a escultura e a música? Que parecem tão distantes entre si.

Fiquei entre a música e a escultura por muito tempo. Acabei indo estudar música nos Estados Unidos. E realmente, como você falou, elas não têm nada a ver, apesar de ter muita coisa a ver. São arte. Então arte é uma forma de comunicação, é uma forma de você, através do seu particular, tentar chegar nas pessoas. No particular dos outros. Mas a escultura é uma arte parada. Ela fica ali te esperando. Você pode começar hoje, acabar daqui a um ano. A música não. A música é aquela coisa que passa o tempo todo. Nesse sentido, ela é mais aflitiva. Você pode fazer uma escultura conversando, você pode fazer uma escultura ouvindo música. A música é mais ciumenta, você tem que se dedicar mais especialmente.

Seus pais também eram escultores. Eles te incentivaram a seguir a carreira de artista?

Eles incentivaram porque a casa só tinha arte. Então, não tinha outro incentivo. Por exemplo, filho de médico, muitas vezes vai ser médico. Ele está ali do lado. E eu, como filho de escultor, era incentivado, mesmo que indiretamente.

E a escultura profissional?

A escolha da escultura profissional foi tardia, foi quando meu pai ficou doente, fui ajudar ele. Ele ficou com câncer e tinha umas encomendas para terminar que ele não ia mais aceitar. Aí eu falei: “eu te ajudo”. Até porque eu não queria que ele ficasse esperando a morte sem fazer nada. Comecei a ajudar ele e aprender o pulo do gato. E, nessa, ficar mais próximo dele.

E também por que ele era um bom professor, como você tinha falado?

Era o melhor jeito dele, porque o meu pai, sem estar trabalhando, era chato. Ele era deprimido, gostava de falar do fim do mundo, da ecologia, da superpopulação e blá-blá-blá. E quando ele trabalhava, ele se perdia. Se perdia naquele trabalho, então era o melhor jeito de eu lidar com ele: aprendendo e trabalhando com ele. Quando ele morreu as encomendas que iam pra ele, começaram a vir pra mim. Hoje em dia, eu não só espero encomendas, eu crio as encomendas também. A música é uma coisa mais pessoal, é como poesia. Ela tem uma coisa que desvenda mais do que artes plásticas, que é mais distanciado. Então, hoje em dia eu invento ah vou fazer alguém. Eu fiz o Marcel Proust. Assim como a Clarice Lispector, quando eu fiz no Rio.  Quem é que vai pagar? Não sei quem vai pagar. Fiz essa coisa de inventar: vou fazer 40 maquetes, vou vender e com dinheiro das maquetes financiar. Então, quando eu quero fazer escultura, eu mesmo proponho dessa forma.

Você tem algumas estátuas de figuras políticas, como Marielle, Lula e Mujica (esse último que, inclusive, fica aqui no Rio Grande do Sul, em Bagé). Como você escolhe quem vai fazer?

É… já me pediram para fazer o Moro (Sérgio Moro) e eu não fiz. Uma vez me ligaram do Paraná: “você faria uma escultura do Moro?”.Fui pesquisar, conversei com meu filho, conversei com as pessoas… Não, melhor não se meter nisso por enquanto. E ainda bem, porque eu não queria estar com o meu nome associado a um cara desses, né. Eu gosto de fazer pessoas que eu acho que merecem, porque acho que a escultura é a melhor forma de eternizar uma pessoa e as ideias daquela pessoa. Então você estar ligado ao Moro, você estar ligado a um monte de coisas que eu não quero estar ligado… A mesma coisa, Marielle. A mesma coisa, Betinho. A mesma coisa, Clarice. Eu gosto de fazer e eu faço quem eu gosto. Fiz também jogadores de futebol, fiz gente de esporte. A escultura em bronze é eternizante. A gente vai embora e elas vão ficar lá. Então tem que ser uma pessoa que mereça.

Na música, o crédito é dado ao músico de forma mais evidente. Isto é, ele está ali tocando. Na escultura, essa relação não é tão direta, se a pessoa não quiser ela não vai atrás de saber quem é o escultor. De que forma você enxerga como esse crédito é dado? Como as pessoas chegam até você?

É muito engraçado quando tem as inaugurações. “Estamos aqui com a senadora tal, o deputado tal. Parabéns deputada, parabéns fulano… e a Brahma que financiou”. O cara que fez, a maior parte das pessoas não estão nem aí. Ninguém imagina “quem que fez esse negócio?”. Não. Se preocupam com quem pagou. Porque normalmente as esculturas de cidade são um feito político, né? O prefeito faz para puxar o saco de alguém. Ele quer puxar o saco dos políticos que interessam a ele ali. Mas tem sempre gente interessante que se preocupa. Você falou bem, muitas pessoas veem uma escultura e não estão nem aí para quem fez. Acho isso de certa forma normal, mas vou pouco a pouco fazendo um monte de esculturas.

Ainda sobre escultura, o seu trabalho como escultor é, também, transformar um ambiente por meio de uma representação de algo, de uma ideia, de uma pessoa, etc. Pessoalmente, o que você acha que as pessoas e a cidade têm a ganhar com esculturas e artes públicas?

Tem a ganhar algumas coisas. Uma é, por exemplo, quem passa pela Clarice e a conhece, adora e senta (ao lado da escultura). Quem não a conhece, vai perguntar quem é. Quem não tiver nem aí, não está nem aí para nada mesmo, não interessa. Outra coisa é que a estátua te dá uma companhia. Ela enche um ambiente. Vira um ponto de encontro. E eu acho que traz uma companhia mesmo, sabe? O corpo é a morada do espírito. Se você tem um corpo representado ali, você já tem a casa do espírito. Quando eu inaugurei a estátua do Nelson Rodrigues, veio uma senhora e falou assim “ele tá ali! Ele está ali”.  Aí eu falei “quem está ali?”. “O Nelson. O Nelson está ali”. “É… a estátua”. “Não, ele está ali. Eu sou espírita” (risos). A mulher entrou numa de que o espírito estava ali. E eu achei muito legal porque o problema da escultura, muitas vezes, é fazer um boneco. Aquela forma sem alma. O difícil da escultura, justamente por ela ser muito estática, é você botar a alma da pessoa lá dentro. Você tem que procurar, é o que eu procuro. Não estou dizendo que sempre consigo, mas a minha busca é essa: não fazer só uma forma qualquer. Às vezes o espírito está até numa forma abstrata.

Como é a resposta do público em relação à sua obra?

Eu acho que tem diversas respostas. Tem a resposta do público que gosta daquela pessoa que eu retratei, que adora sentar do lado dela e sente que está sentado do lado do ídolo dela. Eu fico feliz de ver que as pessoas gostam.

Qual é o tipo de satisfação pessoal que você ganha ao ver uma estátua inaugurada, um livro comprado ou um show aplaudido? O que te motiva a continuar na arte hoje em dia?

A arte é a coisa mais particular que tem. Eu quero conseguir fazer com que o meu particular interesse o máximo de pessoas possíveis. Porque, realmente, se só me interessar, pra mim não tem a menor graça. Eu acho que a gente está aqui para se comunicar. Eu vi uma frase bacana do Martin Luther King, assim: “O que você fez hoje por alguém?” Você viver só para você? A arte é isso, né? É você comunicar. Você levar um pouco do seu espírito e alçar aquela pessoa que está vivendo nesse mundo, que às vezes é complicado, difícil. Um momento que ela está te vendo, te assistindo, lendo, você está alçando ela a um outro patamar, mais espiritual. A arte só se completa na visão do outro, para mim. Enquanto eu fiz uma coisa que ninguém viu ou ninguém gostou, eu ainda não fiz. Quer dizer, eu fiz, mas a coisa não aconteceu. E o bacana da arte é justamente eu não te dar tudo ‘mastigadinho’. É eu te dar alguma coisa e você, com o teu olhar, que vai completar aqui. Minhas esculturas, por exemplo. Claro que eu poderia fazer fio de cabelo por fio de cabelo e fazer o máximo possível aquilo real, mas eu acho que isso em vez de aumentar, diminui. Quando faz uma escultura a gente sugere e teu olhar completa. A gente acaba trabalhando em conjunto. Essa é a coisa mais legal da arte.

Esta reportagem foi desenvolvida para a disciplina de Reportagem e Entrevista, do curso de jornalismo, sob a supervisão da professora Paula Sperb.