Ocupação do MTST tem rotina de organização coletiva e luta por moradia 

Antigo prédio do INSS tem entre os moradores vítimas das enchentes de maio

Andrei dos Santos Rossetto

Reportagem de Maria Meirelles 

Ocupação Maria da Conceição Tavares, no Centro Histórico de Porto Alegre. Reprodução: Instagram/@mtst_rs

*Os nomes dos moradores foram alterados para preservar suas identidades 

A habitação é um problema latente no Brasil, sobretudo em Porto Alegre, segunda pior capital em qualidade de moradia, de acordo com relatório do Índice Progresso Social Brasil (IPS Brasil). O índice do déficit habitacional é uma ferramenta importante para se fazer uma avaliação precisa da situação de moradia de uma determinada região. Segundo o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022, o déficit habitacional de Porto Alegre era de 90 mil moradias. Em 2024, não se tem uma atualização desse dado. Mas com as enchentes de maio, estima-se que o número de pessoas sem casa tenha aumentado.  

Além disso, pesquisas mostram que existe mais casa sem gente do que gente sem casa na capital gaúcha, também de acordo com o Censo de 2022, revelando que Porto Alegre possui aproximadamente 101 mil imóveis ociosos. A conta não fecha. Sabendo que a moradia digna é um direito constitucional, a criminalização da luta por esse direito antagoniza com o que é previsto na Constituição Federal. 

Diante desse cenário, ocupações de prédios ociosos surgem como uma solução, permanente ou temporária. É o caso da ocupação Maria da Conceição Tavares, organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), visitada pela reportagem. 

A ocupação Maria da Conceição Tavares nasceu em 8 de junho de 2024, no antigo prédio do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), na Avenida Borges de Medeiros, número 530. A ocupação surgiu como uma forma de cobrar uma solução emergencial digna para as vítimas das cheias. As ocupações vão além de uma denúncia. “Nós somos imparáveis”, diz Emanuel, 40 anos. 

Emanuel é uma das lideranças da ocupação, coordenador do G1 (setor de homens solteiros) já na sua terceira gestão. Emanuel também é um dos coordenadores da Cozinha Solidária da Azenha, também gerida pelo MTST. A empolgação de Emanuel com a entrevista refletiu na preocupação dele em arrumar um espaço confortável para que conversássemos. Ele vestiu sua camiseta do movimento, passou um café e deixou todos avisados de que teria uma importante reunião, que era para não atrapalharem. 

Em meio as enchentes, Emanuel apareceu na Cozinha Solidária da Azenha buscando comida. Na época, estava ficando em um albergue após perder sua casa para as águas. Em pouco tempo, enxergou ali na Cozinha um espaço de acolhimento. Começou a trabalhar como voluntário. Líder nato, foi promovido a coordenador do espaço. Um mês depois que as águas tomaram a cidade, o prédio do INSS foi ocupado e Emanuel não ficou de fora. “Fiz parte da primeira turma que entrou aqui”, conta. O crescimento pessoal de Emanuel é notório a todos que o conheceram durante as enchentes. Muito disso se dá pelo espaço de visibilidade que teve ao entrar no MTST. Pessoas como Emanuel, que muitas vezes são invisibilizadas pela sociedade, encontram nesses ambientes o acolhimento e a oportunidade de se destacar. É o caso de Arthur, 41 anos. 

Arthur estava em situação de rua com sua esposa, Ananda, 45 anos, antes de ir para a Maria da Conceição Tavares. Natural de Chapecó (SC), quase sempre usando uma touca descartável para cozinhar (exceto nos momentos de reunião e assembleias), tornou-se coordenador do G2 (setor de famílias, casais e mulheres solteiras). “Estávamos em situação de rua há três anos quando fomos buscar marmitas da Cozinha Solidária na praça XV. Daí o Davy [militante do MTST] nos explicou o projeto e a ocupação e decidimos conhecer. Agora estamos aqui”, diz. Coordenando também a cozinha coletiva da ocupação e dono de uma das melhores maioneses de alho que já provei, Arthur explica o estigma que a sociedade tem com pessoas em situação de rua. “A gente em situação de rua, a gente é julgado, né? A comunidade acha que um morador de rua está na rua por ser drogado, né? Então é julgado um livro pela capa sem saber a história de cada um que está na rua, né? O MTST não julga ninguém pela capa, eles ouvem a pessoa. Dão oportunidades. Assim como eu tive a minha oportunidade, de hoje ser um coordenador da cozinha da ocupação e minha oportunidade de ser um coordenador de G [setor], né? Então isso para mim é uma grande mudança e acho maravilhoso. Estamos aí na luta”, diz. 

O estigma também é pontuado por William, 51 anos, que chegou na ocupação através da Cozinha Solidária. Por motivos familiares, precisou sair de casa e buscar abrigo em um albergue. Era fechado, carrancudo, grosso e às vezes até mal-educado. “Moradores de rua são vistos como marginais, drogados. E boa parte não é”, desabafa. Passados cem dias de ocupação, William parece ser uma outra pessoa. Brinca com os companheiros, faz piada. Ainda solta as patas eventualmente em alguém. “Eles [outros moradores] me tiram do sério todos os dias. Mas está sendo bom esse aprendizado, de aprender a conviver em grupo, de entender o coletivo”, relata. 

“Com licença, Maria, já almoçou? Aceita um cafezinho? Um pãozinho?”, interrompe Dona Sandra, 77 anos. Sandra é a avó de todos na ocupação. Com seus cabelos brancos que quase alcançam o chão, assim como a barra de suas saias, sempre de touca descartável na cabeça, pois está sempre na cozinha, Sandra é quem coloca ordem na parada. Juntamente de Arthur, coordena o G2 e a cozinha coletiva. A “vó Sandra”, como é chamada, conheceu a ocupação também através da distribuição de marmitas. “Quando o Diogo [militante do MTST] apareceu lá no Campo Novo, quando a gente tinha perdido tudo, ele apareceu para nos salvar e nos garantir pelo menos o alimento. Nos convidou para vir aqui para a ocupação e a gente veio. A gente não tinha outro lugar para ir”, relembra. 

Dona Sandra e seus netos foram algumas das muitas vítimas das enchentes. “Eu não estou aqui para brincadeira. Eu tenho 77 anos, não tenho mais tempo para brincar. Eu estou aqui para lutar. Daqui eu só saio com a chave da minha casa na mão”, diz. 

A ocupação Maria da Conceição Tavares nasceu com o objetivo de cobrar o poder público uma solução emergencial digna para pessoas como a Dona Sandra, vítima das enchentes. Uma solução levantada pela prefeitura e pelo governo do Estado foram as cidades provisórias, alvo de críticas por especialistas e movimentos sociais. Para Pedro Osório, coordenador estadual do MTST, as cidades provisórias são uma forma de se esquivar do real problema. “Um espaço de cidade provisória cria pequenos ambientes, e aí vai acabar criando guetos urbanos. Então, pela segunda vez, não bastasse o trauma da enchente, não bastasse as pessoas terem perdido tudo, acham que a alternativa é colocar as pessoas numa casinha de plástico, no fundo da cidade onde não tem infraestrutura nenhuma. Não é uma solução”, diz.  

Procurado por telefone e e-mail para esclarecimentos a respeito dessa medida e de outras possíveis soluções para os desabrigados das enchentes, o Departamento Municipal de Habitação (DEMHAB) não respondeu aos contatos da reportagem. 

Tramita na Câmara Municipal o PLL 201/24, projeto de lei que define ocupações como invasões, prevendo punições a quem ocupar imóveis ociosos em Porto Alegre. Entre as punições previstas estão a perda de benefícios fiscais e o impedimento de acessar programas habitacionais. “A gente espera que o projeto seja considerado inconstitucional. Não se pode tirar os direitos básicos das pessoas por uma arbitrariedade dessas”, defende Osório. 

No dia 26 de setembro, o Conselho Nacional de Ouvidorias das Defensorias Públicas promoveu um encontro na Ocupação Maria da Conceição Tavares para debater direito à moradia e a crise climática. Na noite daquela quinta-feira chuvosa, o clima era de festa. Os moradores se organizaram e prepararam tudo. Para a janta, pizza de calabresa, quatro queijos e vegetariana (que tinha até beterraba e chuchu). Ponche sem álcool também foi servido. Tudo pensado por eles. “Vamos receber visita, então vamos receber bem, né”, disse a Sandra. As camisetas não podiam faltar. Todo mundo estava atrás de conseguir sua camiseta do movimento. Deu até briga porque uns tinham e outros não. Eles fazem questão de vesti-las. As camisetas para são mais do que uma vestimenta, são símbolo de pertencimento. 

Gleidson Dias, ouvidor-geral da Defensoria Pública da União, ao ser consultado sobre sua opinião a respeito do PLL 201/24, enxerga como um projeto totalmente inconstitucional. “A Constituição Federal possibilita que todos os movimentos sociais se organizem e pressionem o estado e a sociedade para efetivar direitos”, sustenta. A advogada popular Jucemara Beltrame, também presente no evento, condena o projeto ao fracasso. “Os benefícios que as pessoas recebem, recebem porque elas estão numa situação de vulnerabilidade. Eles possibilitam minimamente que a pessoa se mantenha viva, compre comida, roupa. Não oferecem nenhuma condição para que essas pessoas tenham sua casa e trabalho e querem retirar esses benefícios que foram conquistados com muita luta do povo. Eu não acredito que isso consiga passar por nenhum lugar onde tenha representante do povo”, comenta. As assessorias dos autores do projeto de lei, o vereador Jessé Sangali (PL) e as vereadoras Comandante Nádia (PL) e Fernanda Barth (PL), foram procuradas durante a produção dessa reportagem. As assessorias, entretanto, não responderam aos contatos. 

“É uma injustiça. A própria política tem pessoas injustas que estão fechando as portas para as pessoas não avançarem, para viver de escravo de um salário-mínimo, de mil e poucos reais e não conseguir pagar um imóvel. Ter que ralar, trabalhar em três serviços para poder criar os filhos. Isso é uma injustiça, porque aí estão fechando as portas para dificultar para alguém que está peleando”, diz Rafael, 33 anos.   

Rafael também foi parar na ocupação através da Cozinha Solidária. Ele saiu da cadeia no início do ano e estava em busca de oportunidades de “correr pelo certo”. Foi quando, a convite de um amigo, apareceu na Cozinha Solidária e começou a se voluntariar. Após um tempo, quis ir para a ocupação. Agora, é uma das figuras mais marcantes do lugar, sempre se colocando à disposição para ajudar no que for necessário, seja consertando algo que precise, seja na segurança, na cozinha. Ele destaca que é um espaço que requer muito amadurecimento. “Aqui é uma peleia coletiva. E aqui a gente aprende a trabalhar até o psicológico, né?”, diz. 

Ainda no dia 26 de setembro, dormi na ocupação. Fui escalada para a ronda, uma das atividades que consiste em fazer a segurança interna e externa do prédio, em duplas e em turnos pré-definidos. Ananda e Arthur, como de praxe, descem até o saguão para conferir se os escalados da noite têm tudo que precisam. “Vocês têm café? Água? Um casaquinho, um cobertorzinho? Está tudo em ordem? Qualquer coisa, nos chamem, tá?”. Logo em seguida, Camargo, figura ilustre da ocupação Maria da Conceição Tavares, desce procurando sua bíblia. “Maria!  Você viu minha bíblia? Não acho em lugar nenhum”. Vindo do Maranhão, com um sotaque bem carregado, Camargo tem 43 anos, mas a alma é de criança. Seu maior sonho é comprar um terreno a exatos 42km de distância da ocupação. “Nem tão perto, nem tão longe”. Quer ser agricultor de banana. Às vezes de aipim. Ou de soja. Depende do seu estado de espírito de cada dia. 

“QUEM FOI A PORCA RELAXADA QUE USOU MINHAS CALCINHAS? EU QUERO SABER. VOU ARREBENTAR A CARA DESSA VACA!”. No dia seguinte, me acordo com essas palavras sendo proferidas a todo volume. Confusa, me levanto procurando saber o que está acontecendo. “Isso aqui parece um hospício. É pior que hospício. Se eu estivesse num hospício eu teria mais paz do que aqui”, bufa William. “Até por uma porcaria de calcinha elas se esgoelam, brigam por tudo”, resmunga. 

Foi pensando nisso e em outras questões, que a militância do movimento propôs uma roda de conversa entre mulheres. Toda quinta-feira, às 19h. Um espaço para compartilhar chateações, incômodos, tretas. Mas também um espaço de empoderamento dessas mulheres. Quase todas (se não todas) as mulheres da ocupação já foram vítimas de violência em algum momento da vida. É o caso de Duda. 

Duda tem 25 anos. Viveu por oito anos em um relacionamento conturbado, no qual teve 4 filhos: Benjamin, 8, Benício, 6, Aninha, 4, Bento, 3. Encontrou dentro da ocupação e do movimento amigas e companheiras que lhe mostraram a força para denunciar seu ex-companheiro. Ela conta que tem sido uma viagem de descobertas desde que entrou para a ocupação. Ali, aprendeu sobre seu próprio valor e que quer correr atrás do tempo perdido e focar em si e na criação dos filhos. “Através da luta que eu estou aprendendo. Estou me descobrindo outra pessoa. É muito bom isso, você se sentir livre”, fala. 

No dia 05 de outubro, a ocupação Maria da Conceição Tavares organizou um “bandeiraço” em protesto às falas do prefeito Sebastião Melo (MDB). Em debate eleitoral, alegou que “não tolera invasões como aquela do prédio ao lado do Mercado Público”. Os moradores, ofendidos, organizaram manifestação em frente à ocupação. “Esse prefeito não faz nada pela gente. Quando a gente se organiza para lutar, quer vir nos atacar. Nós, que estamos fazendo uma luta justa, sem prejudicar ninguém”, diz Sandra. “Aqui não vão se criar. Somos imparáveis. Quem não pode com a formiga, não atiça o formigueiro”, diz Emanuel. 

Uma faixa foi pintada coletivamente com as palavras “Ocupação não é Invasão”. Bandeiras foram coletadas de todos os cantos dos três andares ocupados do prédio. Os moradores mais novos, que ainda não tinham camisetas, correram para conseguir emprestadas. 

Reportagem produzida para a disciplina de Reportagem e Entrevista, sob supervisão da professora Paula Sperb.